Michelly 25/03/2024Comentários sobre "Lavoura Arcaica" de Raduan NassarAlém dos elogiosos tratamentos pela linguagem, que apresentam leves pinceladas de barroco, o aspecto genial desta obra reside no âmbito do delírio em que é narrada. Sempre me surpreende a habilidade que um autor ou autora confere ao narrador. Aqui, Raduan Nassar certamente não está em transe ou delírio, mas constrói um personagem imerso no delírio, onde transborda em todo o texto a dor de uma subjetividade incompleta, resultante de uma busca desesperada por uma fuga do tempo. Esta perfeição na construção é tão marcante que torna difícil dissociar o autor do personagem. No texto, o tempo é retratado com virulência, sem qualquer possibilidade de escapar da temporalidade em que o personagem está mergulhado, embora seja perceptível a sua melancólica necessidade de evadir-se do tempo vivido. Nós, leitores, somos lançados em um universo, quase como se estivéssemos no subsolo dostoievskiano, mas com uma forma literária carregada de um inconsciente freudiano, onde a escrita emerge de memórias de uma infância permeada de culpas.
É possível que em inúmeros debates e artigos diversos surja a perspectiva de analisar "Lavoura Arcaica" como um diálogo com a Bíblia, especialmente a partir do ponto de vista da "Parábola do Filho Pródigo". Um exemplo disso é a sua subversão dos preceitos morais presentes na parábola, o que constitui uma violação aos preceitos bíblicos. Essa abordagem enriquece o livro de Raduan Nassar com metáforas, promovendo uma fusão entre o mítico e o religioso. Com isso, o caráter subversivo rompe com a moral predominante na parábola quando Raduan Nassar retrata a volta do filho pródigo não marcada por arrependimentos após o fracasso da partida, mas sim marcada por um sentimento de fracasso e de ausência de remorso diante das aflições do mundo que testemunhou de perto. Nesse sentido, a ruptura assume uma dimensão política, desvinculando-se da moralidade inerente à narrativa bíblica.
Nesse contexto, as referências às parábolas bíblicas são tão marcantes que até mesmo os personagens, como a mãe e parte dos irmãos do narrador, cujos nomes são bíblicos, são retratados como fiéis seguidores dos preceitos paternos. Por outro lado, aqueles que se sentam à esquerda na mesa são transgressores das leis divinas, como Ana, André e Lula, incapazes de se apegar aos sermões do pai, que é rico em parábolas. Aqui, temos personagens que se assemelham às figuras descritas em parábolas que retratam filhos irreconciliáveis, incapazes de trazer algo além de sofrimento ao ambiente familiar patriarcal, e cujo espírito está inclinado para a profanação, confirmando que a fusão entre o mítico e o religioso, aliada à caracterização dos personagens, cria uma atmosfera densa e simbólica, onde o conflito entre o sagrado e o profano se desenrola de forma vívida no romance.
Sabrina Sedlmayer, cuja dissertação de mestrado, intitulada “Ao lado esquerdo do pai: os lugares do sujeito em Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar”, me auxiliou a aprofundar alguns dos tópicos mais interessantes desse gigante da literatura. Recomendo a leitura.