João 19/11/2020
Outros contos - Lima Barreto.
Nessa antologia de contos, experimentamos a simplicidade e a graça da gente simples que habita os cenários provincianos do interior do Rio de Janeiro, como visto em “Manel Capineiro”, aguerrido trabalhador da roça, resignado da vida, mas cheio de ternura pela sua parelha de bois.
A desconstrução dos costumes e das práticas sociais que ferem o senso de moralidade e de cidadania também vem expresso através das narrativas que expõem ao ridículo os protagonistas de tais comportamentos. Assim sucede no conto “Um especialista”, onde um senhor de meia-idade, que abandonou a família para viver na boemia, descobre que a meretriz com quem está tendo um caso é sua filha, que abandonara ainda bebê aos cuidados da primeira mulher no longínquo estado de Pernambuco.
Nos contos “Um e outro” e “Milagre de Natal” predomina a mesquinhez de caráter das protagonistas. No primeiro caso, Lola, uma meretriz nutre sua paixão por um chofer de aparência elegante que trabalha cheio de garbo no seu moderno automóvel. Aos saber que o chofer perdeu seu automóvel e o seu garbo, passando a taxista, Lola o abandona. No segundo conto, uma mãe da pequena-burguesia pretende casar sua filha com um determinado funcionário público. Porém, ao descobrir que esse mesmo funcionário foi preterido no processo de promoção funcional, tendo a promoção se destinado a outro, a mãe muda sua atenção para o funcionário promovido, a fim de casá-lo com a filha.
O falso senso de inferioridade nacional que ainda vigora na mentalidade do brasileiro, e que mais tarde seria traduzido por Nelson Rodrigues como “Complexo de vira-lata”, é explorado no conto “Miss Edith e seu tio”, um caso escabroso que demonstra que a imperfeição moral e os vícios de caráter não constituem atributos exclusivos dos brasileiros, mas evidentemente são compartilhados por todos os povos ao redor da Terra, inclusive por esse casalzinho de ingleses.
Em “Como o ‘homem’ chegou” há uma história hilária e inacreditável por força das atitudes e das decisões tomadas pelos personagens que atestam a que ponto pode chegar a estupidez humana e, sobretudo, o desperdício de recursos da máquina pública para a promoção de medidas inúteis e mal-intencionadas. Trata-se de uma epopeia do grotesco. E que obviamente contém uma carga expressiva do sátiro e do cômico, novamente expondo a ignorância do homem e a incompetência da Administração Pública ao extremo do ridículo, para lhe escancarar os erros e as violências praticadas.
É claro que não se pode deixar de mencionar os dois contos mais célebres dessa coletânea: “O Homem que sabia Javanês” e “A Nova Califórnia”.
O “Homem que sabia Javanês” é uma curiosa história sobre um sujeito desocupado, que para ganhar a vida se inscreveu numa entrevista de emprego cuja vaga foi anunciada no jornal. Era uma vaga para professor de javanês. O homem nada sabia do idioma, mas não se fez de rogado e buscou uns livros que lhe dessem noções sobre a cultura e a língua. Mal aprendeu algumas letras do alfabeto javanês e foi ter com a pessoa que oferecia a vaga. Era um velho, rico e bem relacionado, que queria aulas particulares de javanês para poder ler um livro deixado de herança. Foi contratado e passou a ensinar aos trancos e barrancos o idioma. Passados meses, o velho mau tinha aprendido algumas letras e se deu por vencido: desistiu do idioma. Mas pediu que o “professor” traduzisse para ele a obra herdada em javanês. O “professor”, esperto, não sabia traduzir, pois mau entendia o alfabeto javanês. Então, deu para criar umas historietas e contou ao velho como se tivessem sido traduzidas do livro. O velho ficou encantado com aquelas fantasias narrativas e com o suposto domínio da língua pelo “professor”. Indicou-o a um político para uma vaga na diplomacia com os povos malaios (Javaneses, inclusive). O falso “professor” obviamente topou a ideia e assumiu um rico e nobre cargo na diplomacia brasileira, tendo sido logo indicado para uma conferência internacional sobre a cultura e a língua de Java. Desesperou, mas foi. Na última hora, por incompetência do Ministério das Relações Exteriores, o sujeito foi inscrito numa conferência sobre tupi-guarani em língua portuguesa. E, por essa sorte do destino, foi um sucesso. Voltou da conferência com honras e cheio de mimos. Por fim, foi nomeado para ser cônsul em Havana, onde permaneceu anos no cargo, sem nunca ter aprendido qualquer língua estrangeira, nem tampouco obtido aprovação em concurso público.
O conto “A Nova Califórnia” ataca a hipocrisia e a cupidez do homem. Narra a chegada de um forasteiro misterioso a uma pequena cidade do interior. Trata-se de um alquimista que revela um segredo a três cidadãos daquela cidade. Mais tarde, começam a aparecer covas reviradas no cemitério da cidade. Os ossos dos antepassados estavam sendo surrupiados. A população se espanta com tamanha vileza, manifestando sua revolta contra à natureza profana e obscena dos atos praticados. A opinião da população é unânime e todos querem descobrir o criminoso. Montam vigília durante a noite no cemitério e descobrem os três cidadãos roubando ossadas, flagrados com a calça nas mãos. Os profanadores de túmulos afirmam que descobriram uma forma de transformar ossos em ouro, com ajuda do alquimista forasteiro. Semeiam a ganância e a população logo se interessa. Um dos criminosos, o farmacêutico, pede que retornem na manhã seguinte à sua farmácia que assim lhes contará o processo de transmutação em ouro. A população curiosa se convence e volta para suas casas. O farmacêutico foge de madrugada e, nesse meio-tempo, as pessoas vão saindo sorrateiramente de suas casas e dirigem-se ao cemitério para arrecadar ossos suficientes para obter riqueza com a transformação em ouro. Todos se encontram no cemitério, ainda de madrugada. Os ossos começam a rarear nas covas, mas a ganância das pessoas só faz aumentar. Logo surgem desentendimentos e as pessoas se matam umas às outras.
Boas leituras!