@apilhadathay 16/11/2010
Aonde você vai?
"Para onde você vai?"
Depois de dez anos, permanecem vivas em mim algumas lembranças de Geraldo Boaventura. Primeiro, a do menino que parou o trem que jamais havia estacionado em sua cidade e segundo, as suas peripécias com os políticos, na idade adulta.
Mas o livro traz muito mais que isso: é a história de um Viramundo.
É uma história sobre o poder que há nos heróis infantes, na convivência com aqueles que você admira; é a narrativa dos limites a que se chega uma alegria e uma dor. Acima de tudo, é a tradução da beleza de uma infância e do que nos obriga a deixá-la para trás.
Geraldo aprontava todas, quando menino, mas a sua maior travessura, a história do trem de BH, que nunca parava em Rio Acima, culminou em tragédia e divisor de águas, especialmente em seu coração. Foi quando ele começou a bater perna pelo mundo.
Caminhamos com ele para Mariana, onde foi seminarista. Não é difícil compará-lo a Tom Sawyer, muito embora, perto dele, Sawyer fosse um santo. Dado o episódio da viúva Pietrolina, não posso deixar de exprimir revolta pela pressa que algumas pessoas têm em julgar. Ele é acusado de causar o tumulto de proporções gigantescas na cidadela, quando os verdadeiros causadores o estavam acusando – Geraldo só revelou o lixo embaixo do edredom.
Sabino revela as várias e infelizes alcunhas que Geraldo teve na vida, um para cada lugar por onde passou, e algumas são realmente hilárias. O autor tem o dom de criar graça nos trocadilhos, de uma forma que você demora a perceber quando ele está falando sério.
Uma das ideias que mais me moveu, na história, é a constatação da pitada de nômade que existe em cada um.
"Todos nós somos um pouco Viramundos, ou pelo menos trazemos no íntimo uma irrealizada vocação de peregrinos, mas o que nos faz largar um pouso é a procura de outro pouso. Disfarçamos com pretextos soezes a nossa viramunda destinação de nômades a deambular por este mundo de Deus, e nos tornamos viajantes, bandeirantes, itinerantes, emigrantes, visitantes, passantes, infantes, militantes ou tratantes."
Deslizamos pelas inúmeras amizades feitas pelo mentecapto na jornada, e também pelas desventuras do seu encontro com aquela que seria a sua eterna amada. Conhecemos a sua convivência com os estudantes mineiros e a prova de seus dotes artísticos. Vamos do infame episódio do baile do governador, que é uma das minhas memórias mais vivas, ao encontro de Geraldo com o intragável Herr Bosmann.
"Um pingo d’água, isto é, Viramundo, fizera entornar o caldo e os negrinhos sem saber cumpriram o seu destino, vingando a morte do avô a pétalas de rosa. Viramundo gritou ainda lá da rua:
_ Não ficará pétala sobre pétala!"
Uma das minhas passagens favoritas, especialmente pelo episódio que se seguiu. Ainda damos algumas das melhores risadas com a baixa temporada de Viramundo no hospício – lugar onde ele só se descobriu confinado no dia em que quis sair e não pôde – e o alívio que alcançou quando foi à forra nas costas de um rápido inimigo.
Passamos por sua rápida e singular experiência como candidato a prefeito, o que gerou promessas absurdas e um debate incrível, com um desfecho inesperado.
Somos surpreendidos pelo vasto conhecimento daquele que foi considerado vagante sem rumo, mendigo, viramundo e pobre coitado. Seus anos perambulando pelas culturas incrementaram o conhecimento que lhe foi de tanta valia, nas aventuras seguintes.
"Para tudo existe um jeito, quando por mal não foi feito."
"Quem tem o coração aberto, de Deus está sempre perto."
Somos convidados à experiência de Viramundo no exército, outras longas andanças e pontapés que se tornaram tão costumeiros. Somem-se a isto mais reencontros com velhos amigos e a aproximação de novos, como o cavalo que sabia falar.
Pegamos carona com os três generais que tanto me fizeram rir, na juventude e cujos nomes preservarei à surpresa, porque não quero estragar a graça da maestria de Sabino com os trocadilhos.
"Viramundo é apenas mais um entre eles. (...) Em seu olhar brilha apenas aquela luz mortiça dos que nada esperam e não têm mais para onde ir."
Pegos de surpresa pela perda do amigo Elias, e da forma como se sucedeu, entramos na fase de Viramundo em que ele se perdeu de vez: o menino dentro dele não morreu, uma vez que, até depois da morte, temos endereço certo e uma cova na terra. O menino Geraldo Boaventura desapareceu.
O que mais me impressiona nele é a sua total ausência de medo, seu desapego ao dinheiro e às recompensas, e o fato de que faz o bem puramente por fazer.
Atura qualquer pessoa e situação, desde não mexam com seus amigos. Talvez ainda carregue em si o sentimento de remorso pelo acidente que o fez sair da sua cidade?
Ele viajou e amou, andou e brigou, caminhou e pegou touro a unha, salvou donzela e viajou de novo. Ganhava a confiança das pessoas e ia saindo. Apanhou, passou fome e tornou a viajar. Viveu em cadeia, puteiro, rua, duas vezes em hospício, sem parar muito tempo em lugar algum. Foi do amor ao ódio em sua ligação com o Governador e encarou ideias governamentais que favoreciam o genocídio. Reencontrou vários velhos amigos em situações diferentes e organizou operação de guerra.
O mais curioso é quando você pensa em como a vida dele teria sido diferente se não tivesse cometido aquela pequena falta, no seminário. Digo, é muita hipocrisia condenar alguém a uma vida tão miserável se você é o diretor de um lugar que prega “espalhar a mensagem do amor e do perdão”. Muito curioso.
Terá ele buscado, no seminário e nas andanças, alguma forma de redenção?
Aceitava a tudo de forma tão compassiva que era de se pensar que resolvera escolher viver em pena para pagar a sua culpa pela morte de um pequeno. O desfecho da história, que é a maior surpresa, uma vez que não foi premeditado, pode corroborar o fato.
E, por mais que andem os nossos pés, a sina é o regresso ao lar. Encerro da forma que comecei, com a ideia que melhor traduz Geraldo Viramundo. Questionado sobre aonde iria em seguida, ele sabia que seu destino era um só:
"Para onde me levarem os meus passos."