Arsenio Meira 26/11/2013
Mersault no século XXI
Curto e acachapante, O estrangeiro é o primeiro romance de Camus. (Penso em Augusto dos Anjos, que ainda imberbe escreveu os famosos Versos Íntimos aos 17 anos!)
Conta a história de Mersault, homem de vida aparentemente previsível, funcionário mediano, de pouca conversa, sorumbático (como diria Machado), cultivador de relações esporádicas, que mora em Argel. Camus destila uma narrativa seca em primeira pessoa, e nos revela, desde o primeiro instante, o alheamento do personagem, fixado no desapego à vida, aos valores da sociedade e ao seu próprio cotidiano e destino.
Relendo-o pela terceira vez, posso assentar que a sensação de impacto permanece inalterada. Impressionante a destreza literária de Camus; a maneira como constrói o protagonista. Sua alienação e estranheza poderia desnudar um universo artificial e inverossímil, mas o Argelino o faz parecer perfeitamente natural. A espontaneidade do discurso de Mersault lhe dá vida e consistência. Mersault não sofre ou se encanta.
Começa seu relato soltando , de bate pronto, um pontapé na olhar do leitor: (Mamãe morreu hoje. Ou talvez ontem, não sei). Segue sua vida sem sobressaltos: relaciona-se com Marie com certa indiferença (se ela quiser, ele casa; senão quiser, um dar de ombros é o máximo que se traia dele); aceita as propostas do patrão sem nenhum muxoxo (vai para Paris, se ele assim o designar; se não fica tateando o invisível em seus recantos, e estamos conversados); participa da vida dos vizinhos sem maior emoção (ajuda o macho Raymond, o velho Salamano como quem conserta automóveis).
Um dia, envolvido involuntariamente nas brigas de Raymond, Mersault acaba por cometer uma atrocidade, em plena praia, com sol a pino, no desnorteio do calor, da luz do sol e de sua própria insensibilidade moral. Desse fato, desencadeia-se seu julgamento, no qual ele enfrenta uma penca de juízes, procuradores, testemunhas; parece que o mundo inteiro quer sua jugular. E no julgamento a pena máxima é a pena de morte.
A história de Mersault, durante o julgamento e a prisão, é a de uma ligeira autodescoberta, de uma gradual autoconsciência, que não chega a anular, no entanto, a sua condição de estrangeiro aos outros e aos valores sociais em geral. Porém ele acaba menos insensível à vida, afinal o homem não é um monstro; um pequeno idílio saudoso desponta dos seus olhos, como o amor por Marie, o súbito carinho por Céleste, dono do bar e velho conhecido. Mas o comportamento e os pensamentos ainda persistem, são de alguém estranho às coisas da vida. Como todos estão carecas de saber, "O Estrangeiro" é um típico romance existencialista, como A Náusea, de Sartre, onde o vazio do personagem (e a imotivação de suas ações) é o tema principal.
Além de ser uma enxuta reflexão sobre o alheamento, O Estrangeiro trata ainda, filosoficamente, do confinamento e da pena de morte. Camus nos fala da relatividade de ser um acusado: a memória ou uma fresta de luz ou de céu podem dar mais liberdade do que a aparente liberdade da vida social. Eu, cá do meu lado, não estou muito seguro disso...
Quanto à pena de morte, em poucas e certeiras linhas, ele destrincha a inexorabilidade do destino do condenado, em contraste com a imprevisibilidade de uma hipotética condenação no momento do julgamento. Duas lógicas distintas, uma a da inevitabilidade, outra a da contingência.
Não deixa de ser uma obra que exala tristeza. E seu enredo tem seus pontos alegóricos e proféticos: as pessoas do século XXI, embora conectadas e deslumbradas com isso, continuam adeptas da nefasta "ideologia" do "Vem a nós e ao vosso reino, nada"; estão cada vez mais individualistas, narcísicas, e solitárias.
Agora esporadicamente se renuem em passeatas, protesto mil (alguns vão única e exclusivamente para postar fotos suas no face, twitter e o diabo a quatro, querendo provar sei lá o que e para quem). A despeito desse mundo interligado, voltam sozinhas pra casa. Estrangeiras em seus próprios trilhos. Alguns percebem e pulam fora; outros permanecem alheios até o fim.