Ende 20/07/2011
Uma questão de referencial
Ivan Sant'anna tem seu valor, um valor indelével. Talvez ele tenha, mais que qualquer outro, imputado em mim a paixão pela segurança de voo. Em mim e em muita, muita gente. São raros os meus colegas tripulantes que não tenham lido seu clássico "Caixa Preta". Mas "Perda Total" é um caso à parte.
À exceção do TAM 402, o Gol 1907 e o TAM 3054 foram acidentes muito próximos de mim. No GTD, perdi colegas e vivi o luto de um empresa acostumada até ali a apenas boas notícias. Foi o momento em que tanto a Gol quanto seus funcionários cresceram, na marra, da noite pro dia. Lembro da lista pregada no vidro do d.o., do meu celular congestionado de ligações, da Mari, amiga e comissária da congênere, vir correndo no saguão de Guarulhos e me abraçar emocionada naquela noite dizendo "Que bom que não foi você!" Vítimas de um sistema polvilhado de falhas em que dois pilotos americanos displicentes foram o gatilho de uma tragédia, os ocupantes do 1907 são lembrados no livro com a atenção de sempre. No entanto, como eu estudei muito este acidente e vivo o cotidiano das operações da companhia, é impossível não perceber alguns floreios desnecessários ou mesmo informações imprecisas (cujas correções eu sugeriria honrado para uma próxima edição). Detalhes, que não tiram o valor da narrativa rica do autor. É o estilo de Ivan. Uma das minhas grandes surpresas deste trecho é a descrição, de Ivan, sobre o bate-volta Porto Alegre, bate-volta Goiânia que Décio e Thiago, pilotos do 1907, fizeram uma semana antes do acidente: eu fiz aquele voo com eles e relembrar aquela jornada foi doído. Como contei para o autor por estes dias, Nerisvan, um dos comissários do 1907, havia começado a ler "Plano de Ataque" - livro anterior de Sant'Anna sobre o 11 de setembro - poucos dias antes do acidente, e é bem plausível que um exemplar do livro estivesse a bordo do Boeing. Vale ressaltar o ótimo apanhado de colisões no ar antes do Legacy e do GTD e a demonstração contundente de que nosso controle de tráfego aéreo está muito aquém do que precisamos, e foi o grande responsável pelo ocorrido (os pilotos do Legacy são menos culpados do que a opinião pública leiga costuma achar).
Coisa parecida sinto em relação ao TAM 3054. Eu, que entendo muito de Boeing 737, tive que aprender bastante de A320. A chuvosa e fria noite de 17 de julho de 2007 é, para mim, tão inesquecível quanto a longa noite sem notícias de 29 de setembro de 2006. Mas ao contrário do Gol, que despencou abatido sobre a floresta, longe da vista de todos, e hoje em dia só sabemos que passamos por ele pelos fixos NABOL e TERES nas telas de navegação de nossos aviões, o TAM desapareceu no prédio em frente ao meu, quando eu estava em casa. A descrição do barulho por Ivan foi precisa: "tuf". Um saco de batata, um baque seco. Foi isso que se seguiu ao esganiçado dos motores do Airbus. Lembro da luz laranja e quente iluminar o rosto hipnotizado da Vê quando afastei a cortina e vimos, a menos de 50 metros, um enorme cogumelo de fogo erguer-se do outro lado da rua. Sobre a teoria, na qual muitos pilotos de A320 acreditam, de que o computador da aeronave mandou a informação errada para o motor direito, Ivan não diz nada. Fica até a impressão de que, após o pouso, a tragédia era mesmo inevitável. É um acidente elucidado em parte, numa pista que guarda mais tragédias pro futuro próximo. Pouco mudou no Congonhas de hoje para o Congonhas daquele dia.
O relato do 402, por ser o que menos tive contato - ainda estava no colégio e bem longe ainda da aviação naquela época - foi o que mais me agradou. Além do que é um caso realmente interessante, o qual ele linkou de forma pertinente com o misterioso Lauda Air, Ivan explica bem o funcionamento do reverso do Fokker.
Curioso que nos dois acidentes, um sistema que serve apenas de auxílio à frenagem (os pousos são calculados para darem certo sem eles) tenha sido protagonista.
Enfim, "Perda Total" deixa um gostinho de "poderia ser melhor". É muito bom, mas não alcança o "Caixa Preta". Ou talvez, o leitor do "Caixa Preta", um menino apaixonado por aviões que estava fazendo curso de comissário, seja muito diferente do chefe de cabine com 5mil horas de voo, elemento credenciado pelo CENIPA e autor de dois livros publicados, além de uma outra ficção inédita ("Três Céus") sobre aviação, e que leu o "Perda Total" em apenas dois dias.