Alane.Sthefany 22/07/2022
A Hora da Estrela - Clarice Lispector
Apresentação
Pelo ângulo filosófico, a evidência de que as origens do ser se perdem no tempo e de que é impossível voltar à época em que ?as coisas acontecem antes de acontecer?, leva o indivíduo a um estado de perplexidade. Ao afirmar que ?Tudo no mundo começou com um sim?, o narrador revela que sabe que as coisas se criam por um ato de vontade e de afirmação.
O que é dito no livro, por duas vezes, de uma maneira que nos faz lembrar o verso conhecido de Manuel Bandeira, em seu Pneumotórax: ?Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu desespero, E agora só queria ter o que eu tivesse sido e não fui.? (p. 36), ?A gargalhada era aterrorizadora porque acontecia no passado e só a imaginação maléfica a trazia para o presente, saudade do que poderia ter sido e não foi (p. 48).
(...) o silêncio desloca o homem do esquecimento de si próprio e faz com que viva o ?oco da alma?, O silêncio provoca a angústia de se descobrir como simples estar-no-mundo, entregue a si mesmo, desamparado da firmeza que o senso comum lhe oferece.
(...) a afirmação inicial do livro, de que ?tudo no mundo começou com um sim?, temos diante de nós um enigma a decifrar e um desafio a empreender. O enigma se refere ao primeiro sim (a origem do mundo); o desafio é dizer sim com Clarice Lispector, para continuarmos inventando o mundo. Por isso o texto termina com uma única palavra ocupando todo um parágrafo: ?Sim?. A nós, cabe continuar este movimento estelar. Eis a grande arte de Clarice Lispector.
Trechos Preferidos ?????
Meditação não precisa de ter resultados: a meditação pode ter como fim apenas ela mesma. Eu medito sem palavras e sobre o nada.
Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve.
Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer?
A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique.
(...) que cada um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro ? existe a quem falte o delicado essencial.
Limito-me a humildemente ? mas sem fazer estardalhaços de minha humildade que já não seria humilde
(...) bem sei que cada dia é um dia roubado da morte.
As coisas estavam de algum modo tão boas que podiam se tornar muito ruins porque o que amadurece plenamente pode apodrecer.
(...) vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das coisas neste momento.
Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados.
Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome da moça. Sem falar que a história me desespera por ser simples demais. O que me proponho a contar parece fácil e à mão de todos. Mas a sua elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido o que estáquase apagado e que mal vejo. Com mãos de dedos duros enlameados apalpar o invisível na própria lama.
Eu que quero sentir o sopro do meu além. Para ser mais do que eu, pois tão pouco sou.
Trata-se de moça que nunca se viu nua porque tinha vergonha. Vergonha por pudor ou por ser feia? ?
Essa moça não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro. Daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver. Não sabia para quê, não se indagava. Quem sabe, achava que havia uma gloriazinha em viver. Ela pensava que a pessoa é obrigada a ser feliz. Então era. Antes de nascer ela era uma idéia? Antes de nascer ela era morta? E depois de nascer ela ia morrer?
Eu não inventei essa moça. Ela forçou de dentro de mim a sua exigência.
Uma vez por outra tinha a sorte de ouvir de madrugada um galo cantar a vida e ela se lembrava nostálgica do sertão. Onde caberia um galo a cocoricar naquelas paragens ressequidas de artigos por atacado de exportação e importação? (Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de si para ver como é às vezes o outro. Se é pobre, não estará me lendo porque ler-me é superfulo para quem tem uma leve fome permanente. Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia. "Bem sei que é assustador sair de si mesmo, mas tudo o que é novo assusta."
O cantar de galo na aurora sanguinolenta dava um sentido fresco à sua vida murcha. Havia de madrugada uma passarinhada buliçosa na rua do Acre: é que a vida brotava no chão, alegre por entre pedras.
(...) saudade do que poderia ter sido e não foi.
Se a moça soubesse que minha alegria também vem de minha mais profundo tristeza e que tristeza era uma alegria falhada.
Quem espera sempre alcança.
(Quando penso que eu podia ter nascido ela ? e por que não? ? estremeço.)
Em todo caso o futuro parecia via a ser muito melhor. Pelos menos o futuro tinha a vantagem de não ser o presente.
(Estou passando por um pequeno inferno com esta história. Queiram os deuses que eu nunca descreva o lázaro porque senão eu me cobriria de lepra.)
Que se há de fazer com a verdade de que todo mundo é um pouco triste e um pouco só.
A rotina me afasta de minhas possíveis novidades.
Quis descansar as costas, por um dia? Sabia que se falasse isso ao chefe ele não acreditaria que lhe doíam as costelas. Então valeu-se de uma mentira que convence mais que a verdade: disse ao chefe que no dia seguinte não poderia trabalhar porque arrancar um dente era muito perigoso. E a mentira pegou. Às vezes só a mentira salva. (...) ela teve pela primeira vez na vida uma coisa a mais preciosa: a solidão. Tinha um quarto só para ela. Mal acreditava que usufruía o espaço. E nem uma palavra era ouvida. Então dançou num ato de absoluta coragem, pois a tia não a entenderia. Dançava e rodopiava porque ao estar sozinha se tornava: l-i-v-r-e!
"Encontrar-se consigo própria era um bem que ela até então não conhecia." Acho que nunca fui tão contente na vida, pensou. Não devia nada a ninguém e ninguém lhe devia nada.
Promessa é questão de grande dívida de honra.
As boas maneiras são a melhor herança.
(...) ele não era inocente coisa alguma, apesar de ser uma vítima geral do mundo. Tinha, descobri agora, dentro de si a dura semente do mal, gostava de se vingar, este era o seu grande prazer e o que lhe dava força de vida. (Olímpico)
Foi a única vez em que falou de si própria para Olímpico de Jesus. Estava habituada a se esquecer de si mesma.
? Você sabia que na Rádio Relógio disseram que um homem escreveu um livro chamado ?Alice no País das Maravilhas? e que era também um matemático? Falaram também em ?élgebra?.
(Estava lendo o livro Alice no País das Maravilhas também)
?Una Furtiva Lacrima? fora a única coisa belíssima na sua vida. Enxugando as próprias lágrimas tentou cantar o que ouvira. Mas a sua voz era crua e tão desafinada como ela mesma era. Quando ouviu começara chorar. Era a primeira vez que chorava, não sabia que tinha tanta água nos olhos. Chorava, assoava o nariz sem saber mais por que chorava. Não chorava por causa da vida que levava: porque, não tendo conhecido outros modos de viver, aceitara que com ela era ?assim?. Mas também creio que chorava porque, através da música, adivinhava talvez que havia outros modos de sentir, havia existências mais delicadas e até com um certo luxo de alma.
A mosca voa tão depressa que se voasse em linha reta ela ia passar pelo mundo todo em 28 dias?
Será que o meu ofício doloroso é o de adivinhar na carne a verdade que ninguém quer enxergar? Se sei quase tudo de Macabéa é que já peguei uma vez de relance o olhar de uma nordestina amarelada. Esse relance me deu ela de corpo inteiro.
E tudo devia ser porque Glória era gorda. A gordura sempre fora o ideal secreto de Macabéa, pois em Maceió ouvira um rapaz dizer para uma gorda que passava na rua: ?a tua gordura é formosura!? A partir de então ambicionara ter carnes e foi quando fez o único pedido de sua vida.
Eu sou sozinha no mundo e não acredito em ninguém; todos mentem, às vezes até na hora do amor, eu não acho que um ser fale com o outro, a verdade só me vem quando estou sozinha.
Só sou verdadeiro quando estou sozinho.
Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já estava mudada. E mudada por palavras ? desde Moisés se sabe que a palavra é divina. Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa.
Se ela não era mais ela mesma, isso significava uma perda que valia por um ganho.
Algumas pessoas brotaram no beco não se sabe de onde e haviam se agrupado em torno de Macabéa sem nada fazer assim como antes pessoas nada haviam feito por ela, só que agora pelo menos a espiavam, o que lhe dava uma existência.
Eu poderia resolver pelo caminho mais fácil, matar a menina-infante, mas quero o pior: a vida. Os que me lerem, assim, levem um soco no estômago para ver se é bom. A vida é um soco no estômago.
Fora buscar no próprio profundo e negro âmago de si mesma o sopro de vida que Deus nos dá.
Então ? ali deitada ? teve uma úmida felicidade suprema, pois ela nascera para o abraço da morte. A morte que é nesta história o meu personagem predileto. Iria ela dar adeus a si mesma? Acho que ela não vai morrer porque tem tanta vontade de viver.
A morte é um encontro consigo.
Macabéa me matou.
Ela estava enfim livre de si e de nós. Não vos assusteis, morrer é um instante, passa logo, eu sei porque acabo de morrer com a moça. Desculpai-me esta morte.
Morreu em um instante. O instante é aquele átimo de tempo em que o pneu do carro correndo em alta velocidade toca no chão e depois não toca mais e depois toca de novo.
E agora ? agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre.
Mas ? mas eu também?!
Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
Sim.