Renata CCS 18/07/2016E se Mia não fosse africano?.
Se Mia não fosse africano, seria carente a geração de escritores que abraçam não só a realidade africana, mas a realidade de nossos tempos e traçam linhas para indicar de onde viemos e para onde vamos.
Se Mia não fosse africano, a língua portuguesa não seria esse imenso ambiente de resistência, e muito teria que lutar para não ser silêncio.
Se Mia não fosse africano, não teríamos tantas histórias com relações tão abertas e próximas entre o sonho, o fantástico e a oralidade.
Se Mia não fosse africano, talvez não vivenciássemos o que mais gostamos de ler sobre a espécie humana: essa profunda diversidade e a infinita capacidade de produzir diferenças. E como essas diferenças se reconhecem, apesar de tudo, numa mesma identidade.
Se Mia não fosse africano, a nossa língua portuguesa serviria, mas não bastaria. Seria preciso introduzir nesse português uma marca de mudança, de identidade própria.
Se Mia não fosse africano, leríamos o continente africano pelas palavras de outros, mas sem que conseguissem transformar a simplicidade da sabedoria popular em poesia e reflexões notáveis.
Se Mia não fosse africano, a poesia seria apenas mais um gênero literário, e não um saber, um olhar, uma transcendência.
Se Mia não fosse africano, seu povo, tão marcado pela dor e adversidade, provavelmente se permitiria abandonar a capacidade de sonhar.
Se Mia não fosse africano, não teríamos ninguém que nos dissesse que não precisamos de grandes certezas para ser felizes.
Se Mia não fosse africano, não saberíamos fazer valer as histórias de cada um, acima da identidade racial.
Se Mia não fosse africano, a história de um homem seria sempre mal contada, porque a pessoa é, em todo o tempo, ainda nascente.
Se Mia não fosse africano, não aprenderíamos que, logo de manhã, precisamos passar um sonho pelo rosto, porque é isso que impede o tempo e atrasa a ruga.
Se Mia não fosse africano, não saberíamos que o mar é um habilidoso desenhador de ausências.
Se Mia Couto não fosse africano, jamais enxergaríamos que somos donos do tempo apenas quando o tempo se esquece de nós.
Se Mia não fosse africano, ninguém nos ensinaria que a pessoa é uma humanidade individual, que cada homem é uma raça.
Se Mia não fosse africano, nenhuma pessoa entenderia que não é da luz do sol que carecemos... Carecemos do nascer da Terra.
Se Mia não fosse africano, a gente não saberia dar nome às coisas, e os sonhos não falariam em nós o que nenhuma palavra sabe dizer.
Mas Mia é africano, e não escreve somente como moçambicano, pois rejeita a condição de refém da própria história, celebra o poder da palavra e nos ensina que, ao lado de uma língua que nos faça ser mundo, deve coexistir outra que nos faça sair do mundo.
Muito obrigada, Mia Couto, por ser um poeta que teve a ousadia de escrever em prosa.