Margô 05/01/2024As núpcias com a loucuraMagistralmente, Autran Dourado nos guia para o casamento de Rosalina com a sua loucura. A passos lentos. Tecendo ela mesma as flores que ornamentariam o seu caminhar nupcial.
Rebento da família Honório Cota – revisitada tantas vezes na literatura autraniana, numa intratextualidade fabulosa –, Rosalina cultiva, como seu pai, um ressentimento sem precedentes da traição política que a gente dali cometera. Enclausurada no Sobrado, que é, também, personagem, Rosalina vive seus dias dividida entre produzir flores de tecido – não por precisão, mas por gosto de ocupar seus dias ociosos – durante o dia e entregar-se ao vício do alcoolismo durante a noite – para tristeza de Quinquina, aquela que, silenciosamente a acompanhava em toda essa clausura.
Atada às memórias do que já passou, Rosalina não permite que ninguém chegue perto daquela sua fortaleza, construída com muito esmero por Lucas Procópio, seu avó – ainda apenas a casa de baixo, salienta nosso narrador – , e finalizada e transformada em sobrado pelo coronel João Capistrano Honório Cota, seu pai, por um mestre que ele mandou buscar de longe. O Sobrado, tendo vivido dias melhores, estava já em ruínas, decaído. Em algumas partes, já era possível ver a tinta arrebentando, o reboco caindo... mas Rosalina não dava o braço a torcer.
Aquele ambiente em decadência, que é o retrato das famílias que Autran busca retratar em suas obras, é o cenário perfeito para o desaguar na loucura de Rosalina, uma mulher que passa a ser três: 1- antes da chegada de Juca Passarinho – um homem que irrompe os portões bem-fechados do Sobrado dos Honório Cota; 2- a Rosalina diurna que é moça bem-comportada; e 3- a Rosalina noturna que, além de alcoolista, também se entrega ao desfrute com Juca.
Realizando-se através de Juca Passarinho aqueles desejos que tinha com seu Emanuel, Rosalina vai, pouco a pouco, encaminhando-se para seu fim: envergonhada com a gestação que contraíra, busca esconder o quanto pode de Quinquina. Esta, quando percebe o que se passa, deseja o fim daquela criança. Pensa em oferecer um chá abortivo, pensa em assassinar a criança quando nascer – o que acaba fazendo. Entretanto, sabe-se perigoso: Quinquina mesma ressalta que o perigo não é o parir, mas a febre que pode vir depois. A febre que tresvaria, que desnorteia. Uma febre que, às vezes, deixa como sequela a loucura definitiva. E é essa loucura que pega Rosalina.
Seu Donga Novais – ele mesmo, do Novelário de Donga Novais –, um insone crônico, quem vê e conta tudo – ninguém duvida da palavra dele, se ele viu, é fato. Rosalina, de branco, caminhando por cemitério – vai ver, atrás do filho morto. Cantando uma cantiga desconhecida – quem diz a letra, inventa, afirma o narrador. Seu Donga pede intercessão de seu Emanuel, encarregado de cuidar dos espólios dos Honório Cota para que Rosalina pudesse viver com conforto – as marcas do tempo em que a mulher não tinha controle dos seus próprios bens. E aí nasce a núpcia dela com a loucura.
A cena final, a gente, a falação, a presença naquela casa tão vazia, faz com que o momento se torne ainda mais grandioso. Encaminhada para Deus sabe onde, Rosalina desce, tão bela, ostentando a rosa que fizera – a mais bela – para usar para seu Emanuel. Não pensara ela que seria para aquele momento... que vida amarga.
No último badalar dos relógios – parados, todos eles –, Rosalina, “nosso espinho, nossa dor”, parte. Juca e Quinquina também, Deus sabe pra onde.
"De branco, o vestido comprido e rendado, uma rosa refolhuda no cabelo, lá vinha ela. [...] A cabeça erguida, o porte empinado, hierático, ela mais parecia uma rainha descendo a escadaria dum palácio, uma noiva boiando no ar a caminho do céu". (p. 237)
"[...] Lá se ia Rosalina para longes terras. Lá se ia Rosalina, nosso espinho, nossa dor." (p. 238)