Aione 07/12/2011Novamente, enfrentarei o desafio de resenhar um livro que, para mim, foi um dos melhores do ano. Talvez essa resenha devesse ter sido feita logo após o término da leitura, quando estava em meio a um turbilhão de diferentes emoções. Entretanto, preferi primeiro as digerir, a fim de refletir tanto sobre o que li quanto sobre o que senti.
Dizer que a narrativa de Leonardo Zegur é impactante seria pouco. Sua escrita, que prende a atenção e traz o leitor para dentro da história, é um tapa na cara a cada página, de tão forte é a crítica social embutida nela. Ademais, a narrativa é direta e choca com a violência de algumas cenas.
O personagem principal não tem nome e mal é descrito. O que sabemos é ser magro, de pele meio amarelada e considerado feio, tão feio a ponto de causar repugnância nas pessoas, afastamento e isolamento social. Passar a vida sendo vítima de bullying e rejeição o destruiu e acredito que essa destruição seja a responsável pelo personagem não ter nome na história: sua exclusão social foi tanta que sua identidade foi perdida. Ainda, a ausência do nome torna possível que o personagem seja qualquer cidadão brasileiro, vítima dos mesmos problemas. O título, "Um Lugar Escuro", é uma alusão ao psicológico do personagem, ao que sua alma se tornou.
“Toda semente do mal que lançaram em minha alma germinou e agora não há nada que possam fazer para me parar. Antes, o fato de ser rejeitado era apenas problema meu, agora se tornou um problema social.”
página 22
Ao mesmo tempo em que é dotado de uma extrema feiúra, o personagem também é inteligentíssimo, culto e com um forte espírito crítico. Sua válvula de escape, vício e único meio onde se sente aceito é a internet, na qual pode expor seus pensamentos e emoções, além de se relacionar com outras pessoas sem sofrer o preconceito por sua aparência: o fato de não mostrá-la permite que as outras pessoas se aproximem.
Seu espírito crítico aliado a todo seu sofrimento o transformam em alguém revoltado, que passa a agir segundo suas próprias leis, já que não mais acredita nas que regem a sociedade, privilegiando uns em detrimento dos outros. A todo momento, Leonardo Zegur nos mostra as falhas da sociedade, os crimes cometidos por uma minoria beneficiada por se enquadrar nos padrões aceitos socialmente e que permanecem impunes. Essa acaba por ser a maior justificativa do protagonista para suas atitudes, a qual se repete por diversas vezes na história.
“Sinceramente, só quero que entenda quem sou por de trás da imagem estigmatizada que possa fazer de mim. Não me importo com a caracterização que a lei me venha impor. A nossa lei é permissiva quanto a determinados erros e radical contra outros. A sociedade, junto com a lei é indulgente – por exemplo – com os fumantes que matam ou causam dolo de forma passiva com doenças relacionadas ao tabaco. Por outro lado, quem mata mesmo sem intenção de matar é indiciado por crime. Seria ingenuidade afirmar que as pessoas que fumam desconhecem os riscos que causam aos que estão próximos. Não quero justificar meus erros, mas acho que isso é apenas reflexo de um sistema em colapso. Caras como eu são apenas sintomas de uma sociedade doente, pôr a culpa sobre mim não mudará nada, ao contrário, só acobertará o real problema.”
página 21
“E é por isso que hoje vejo que é preciso um colapso no comportamento social, para que se agrida esse mecanismo imutável que leva a sociedade sempre pelo mesmo caminho. Quem sabe assim as coisas começam a mudar.”
página 71
Uma característica da obra é a erotização da mulher, cuja beleza é sempre vista de uma maneira sensualizada. Tal aspecto aliado à aproximação entre o protagonista e a favela (a qual passa a habitar em determinado momento) de forma que apresentem características semelhantes, lembraram-me de “O Cortíço”, de Aluísio Azevedo, obra representativa do Naturalismo, vertente do Realismo no Brasil.
Outro artifício de Leonardo para nos fazer refletir, além das críticas sociais, é a retirada das máscaras durante a história. O autor é direto ao mostrar o porquê de certas atitudes das pessoas de um modo geral, sem fazer rodeios.
”As garotas dizem que só querem dançar, mas isso é papo furado, elas querem se sentir cobiçadas, querem ver quantos caras as abordam por noite e com isso tirar um percentual de popularidade e do quanto são sensuais e atraentes. Como se isso fosse referência, uma vez que os garotos do Rio de Janeiro aceitam qualquer garota – principalmente depois de bêbados – não há mérito em dizer que conheceu três, cinco ou dez rapazes. A maioria ali só está carente, tentando esquecer seus problemas, afogar suas dores num beijo, desprezar antigos amores. Pois bem, como todo mundo eu também queria uma garota, não vou negar.”
página 38
Acredito ter encontrado apenas um ponto que poderia ser tomado como negativo, mas que pouco influencia na leitura. Leonardo se utiliza de algumas falas do protagonista para inserir dados de pesquisas que fundamentam sua opinião. Entretanto, alguns são muito específicos e detalhados e, mesmo considerando o desenvolvimento intelectual do personagem, parecem ser difíceis de serem memorizados em uma situação real, o que, nestes momentos, dão uma leve sensação de artificialidade nos diálogos. Fora estes momentos, em todos os outros as conversas são fluidas e naturais.
Fui tomada por diversos sentimentos e reflexões durante a leitura. Pensei em minhas atitudes, senti revolta e desânimo por me dar conta de tantas falhas existente na estrutura social, tanto nas formas de governo quanto na própria população, além de uma modificação na minha forma de enxergar os motivos que levam alguém a entrar no mundo do crime. Quero deixar claro que não concordo com nenhum tipo de violência, não acredito que essa seja a solução para algo. Mas o que Leonardo Zegur faz é uma humanização dos que levam essa vida, dos que são marginalizados pela sociedade. Além disso, deixa óbvio que a violência vai muito além do ato físico da agressão, também se dá de maneira igualmente, ou até mais, destrutiva ao ferir os sentimentos de uma pessoa, e que atire a primeira pedra quem nunca praticou tal ato com o outro.
Imaginei que, finalizada a leitura, seria tomada por um estado deprimido por me deparar com tantos problemas sem solução aparente, devido a suas gigantes proporções. Porém, fui invadida por um surpreendente sentimento de compaixão e pela certeza do poder do amor sobre alguém. Acima de qualquer motivo, o que leva alguém a ser cruel é a ausência do amor, em qualquer forma. Ao sentir amor, pratica-se a compaixão e, às vezes, um simples ato de bondade e carinho pode fazer toda a diferença. O que senti ao terminar a leitura foi essa vontade de praticar a compaixão, de procurar fazer a minha parte com pequenos gestos que podem significar algo para alguém e, talvez, esse alguém, se tocado pelo mesmo sentimento, levasse-o adiante, criando, dessa maneira, uma corrente de amor. Talvez seja fantasioso ou utópico ter esses pensamentos, mas tê-los é o primeiro passo para se tomar uma atitude ao invés de simplesmente continuar sentada conformada com o caos de uma sociedade corrompida.
Para finalizar, já que sei que me estendi, só tenho a parabenizar o autor por seu excelente trabalho e por ter me possibilitado essa leitura que, indubitavelmente, tornou-se uma de minhas favoritas. Este não é um livro cuja finalidade seja unicamente o entretenimento, é um que perturbará suas reflexões a fim de abrir não só seus olhos, mas, principalmente, sua mente.