Felipe 18/12/2010
Sempre em alto nível
Chico Buarque é um dos grandes nomes de nossa música, autor de obras-primas. Não seria justo que se exigisse igual qualidade de sua literatura. Porém, o nível que o Chico escritor consegue em “Leite Derramado” não deixaria o Chico compositor envergonhado.
O livro tem como protagonista um moribundo, Eulálio Assumpção, que narra suas lembranças a um ouvinte não definido ou categorizado. Suas memórias são confusas, como era de se esperar de um moribundo. Ele tem fixação com a sua esposa, Matilde, da qual o narrador revela aos poucos o destino e mesmo assim deixa o leitor confuso sobre as versões dos fatos, teria Matilde morrido de doença como hora o narrador deixa a entender, ou de acidente com seu suposto amante como em outro momento fica subentendido. A própria procedência aristocrática que o narrador declara de sua família fica sob suspeita quando se percebe que pode ser tudo invenção de um narrador velho que quer chamar a atenção de um ouvinte. Outro lance que faz o leitor suspeitar que tudo não passar de memórias de um passado inexistente é quando por duas vezes, seus descendentes deixam filhos póstumos, quando um deles morre nos porões da ditadura e outro assassinado por um marido ciumento, que teria sido a mesma forma que o pai do narrador teria morrido.
Porém, mesmo que a história, em suas várias versões conflitantes, seja invenção da cabeça do narrador ela é uma boa história familiar. Envolve várias gerações dos Assumpção, desde sua filha única, Maria Eulália, que fora abandonada por sua mãe e criada pelo narrador, sua ascendência supostamente aristocrática com auge durante a república velha e seus descendentes que chegam ao Rio atual onde um deles é preso por tráfico de drogas. Todos as intrigas familiares estão lá, amores, ciúmes e sentimentos mal resolvidos.
O romance começa devagar, mas aos poucos vai envolvendo o leitor a entrar nas memórias do narrador moribundo. A curiosidade sobre o que teria acontecido com Matilde, esposa do narrador, dá toques de suspense ao livro, incluindo a dúvida se ela teria ou não o traído (alguma semelhança com Dom Casmurro?). E no final a grande ironia da obra, seriam verdadeiras as memórias do narrador? Devido à idade dele, segundo ele 100 anos, nem o próprio poderia com certeza afirmar se o que relata de fato ocorre ou é tudo fruto de sua imaginação.
O texto de Chico não chega a empolgar o leitor, mas sem dúvida é de grande qualidade e trata-se de um bom livro com um enredo bem estruturado e narrado de forma a parecer ser contado por uma pessoa quase centenária. Um livro que não chega a qualidade da música composta pelo autor, mas fica longe de decepcionar.