@aangeladani 23/12/2016
As esganadas - Jô Soares
A história de Caronte - assim como ele próprio - era bastante bizarra. Um cara muito magro (praticamente esquálido), muito alto e de uma palidez cadavérica, que herdara do pai, Olavo Eusébio, a funerária Estige, a mais famosa do Rio de Janeiro na época, e que nutria um ódio quase visceral por sua mãe, Odília Barroso. Mesmo tendo o sonho de ser maestro, precisou participar dos negócios da família, aprendendo desde muito cedo a lavar e preparar cadáveres. Aos 17 anos foi estudar na Alemanha sobre tanatopraxia, uma moderna técnica de embalsamamento que preserva a aparência do corpo, minimizando alterações fisionômicas e permitindo que o velório se estenda além do tempo normal das 24 horas, caso fosse necessário. Seu ódio pela mãe, uma mulher obesa e imensa, se dava pelo fato de se sentir muito reprimido por ela, que tinha pânico que o único filho também engordasse e que, por isso, o mantinha em uma rigorosa dieta. O receio de Odília era desnecessário, já que Caronte herdara as características físicas do pai e o seu metabolismo era extremamente acelerado. E para piorar todo esse seu ódio e agravar a sua tortura, a mãe era uma exímia cozinheira de mão cheia do cardápio português. Sua morte foi considerada como um acidente tendo total participação de Caronte, mas isso nunca foi sequer desconfiado pelas autoridades. Mas Caronte logo percebe que jamais conseguirá se livrar da mãe, a menos que a mate em todas as mulheres gordas que encontrar. E só isso não bastava: ele precisaria atrair cada gorda com as receitas portuguesas da mãe, que ele aprendeu em segredo, para que cada chacina o lembrasse de forma cruel a morte de Odília. E aí começava a sua caça às gordas, atraídas com as iscas gastronômicas mais irresistíveis e deliciosas. E após matá-las com requintes de crueldade e métodos grotescos e repulsivos, Caronte ainda sentia necessidade e até um certo prazer sórdido em expor os corpos das pobres vítimas como uma forma de escárnio e deboche das autoridades, já que ele sabia que não era, nem de longe, tido como um suspeito devido às suas características físicas, um tanto quanto raras...
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47º leitura do ano! É a segunda vez que leio esse livro recheado de um humor bastante peculiar e de vários trocadilhos. Assim como na primeira vez que li, adorei a história e a forma como foi contada, pois é interessante já ficar sabendo desde o início quem é o culpado dos crimes no caso das esganadas, e toda a graça da trama gira em torno das investigações da polícia, enquanto nós, leitores, nos sentimos como testemunhas de tudo, dando vontade de gritas: acordem! Olha o culpado aí, bem debaixo do nariz de vocês! rs. Essa forma de revelar desde o início quem é o assassino (inclusive em detalhes anatômicos), não tira em nada o interesse pela história, pelo contrário: só aguçou ainda mais minha curiosidade em saber como ele seria descoberto e qual seria a sua punição. E mesmo agora, tendo lido pela segunda vez, a história me envolveu, me fez rir e foi muito interessante recordar os detalhes dessa trama ambientada na época do Estado Novo (inclusive citando e contextualizando personagens reais daquele período).
Pra finalizar, preciso dizer três coisas: 1º, de uma forma contraditória, as várias citações de doces e guloseimas portuguesas que aparecem na história, me causou vontade, fome, mas também uma certa repulsa por causa das descrições sobre como o assassino matava cada uma das pobres moças bonitas e detentoras de avantajados corpos no tamanho XGGG, rsrs; 2º, a apresentação sobre o livro (que consta na capa de trás) feita por Luis Fernando Veríssimo, só faz jus ao conteúdo, me despertou interesse e foi o que eu li primeiro quando ganhei esse livro, lá em 2012. Concordo com suas observações, principalmente sobre ficar ao mesmo tempo horrorizado e com fome, rs; e 3º, antes do epílogo, a história se encerra com a citação de um provérbio português que tem tudo a ver com a trama e é perfeito para fechar com chave de ouro esse thriller dinâmico,bem humorado e irônico na medida certa. Eu super indico!
Nota: 5/5 (excelente e favorito)