Lisa 21/03/2023
Os longos e inescapáveis braços do machismo
Conheci e me encantei pelo Kawabata através de "Mil Tsurus", logo busquei um próximo, e "A casa das belas adormecidas" foi um título me conquistou. Tem um quê de mistério e de nostalgia ao lembrar fantasias e o onírico. De fato, este é um livro que nos remete aos contos de fadas, mas não as versões da disney. Esta é uma história que foi perturbadora de ler para mim, e admito com muito custo, salvo a escrita, não gostei de nada.
Tal como o titulo indica, o foco aqui é pintar o retrato da velhice, o que ela representa e traz consigo, como a solidão, a perda dos prazeres, a desesperança, bem como a alegria e sorte de poder vislumbrar juventude novamente a partir de um local, uma casa "secreta". Quase como em "Diário de um velho louco" do Jun'Ichiro Tanizaki, acompanhamos o relato de um homem em seus 60 anos e suas reflexões sobre o envelhecimento. Contudo, diferente do Tanizaki, Kawabata falhou e muito em me fazer sentir empatia ou qualquer conexão amena com seu protagonista, uma vez que essa premissa se perde no seu plano de fundo, as mulheres drogadas, dopadas e adormecidas a mercê de homens por toda noite.
A intenção do autor não é mostrar essas moças, elas não têm nome, nem histórias, sabemos apenas o que o personagem infere delas, visão essa extremamente enviesada. Mas foi impossivel para mim não tornar essa meninas as protagonistas dessa história. Ainda que o objetivo seja acompanhar as elucubrações de um senhor a partir das memórias evocadas nesse lugar, foi inevitável não me horrorizar com o machismo estrutural em sua mais perfeita pureza e naturalidade "inocente" através dessas páginas.
Veja bem, são mulheres extremamente jovens de cerca de 19 anos, talvez até menos, que são dopadas em um nível que seja impossivel acordá-las e acredite, o Senhor tentou e como. Há um acordo superficial de que não sejam estupradas nem abusadas pelos clientes, como se isso bastasse, como se não houvesse outras maneiras de se violentar alguém. Como se o corpo vulnerável, disposto ali, disponível para ser manipulado, invadido da maneira que melhor convir a esse outro não fosse violência. Se a vítima não lembra, o ato deixa de existir, deixa de ser menos relevante ou problemático? Por que alguém não tem consciência, então o outro ganha passe livre para ser imoral? É o anel de Giges platoniano?
O protagonista discorre em cada capítulo sobre a possibilidade de estuprar essas moças, de lhes retirar a virgindade, chega a questionar que diferença faria. Fantasia sobre ser agressivo com elas, estrangula-las, mordê-las, ver se acordam. E o fazê-lo simplesmente por que pode, ou ainda, como ele diz, se vingar pelos colegas que não podem fazê-lo e que vai escalando até o final.
"A casa das belas adormecidas" retrata como o corpo feminino é visto pela sociedade, onde mesmo na velhice, com esses homens já senis, impotentes ou quase, a mulher continua um corpo descartável, para ser usado para satisfazer, para servir homens sem questionamentos. E o fato do autor ter pensado essa história sem sequer se abalar com essa problemática demonstra a naturalidade disso. Particularmente penso que a Arte não tem obrigação alguma em ser descente ou moral, nem ensinar algo, então não digo se é um livro bom ou ruim, mas não a impede de que certas histórias me desagradem. Essa sem dúvidas foi uma delas.