Lucas 11/02/2022
O materialismo como bússola dos rumos de uma família e suas influências individuais
Vem do que hoje se entende por Alemanha o chamado romance de formação, ou como é chamado por lá, "Bildungsroman", gênero literário criado pelo escritor Johann Von Goethe (1749-1832). Esse estilo de literatura, surgido em fins do século XVIII, foi inovador para a época: pela primeira vez, o desenvolvimento espiritual, social, psicológico e até mesmo físico dos personagens adquiriu preponderância narrativa. Tal segmento literário presenteou a humanidade com incontáveis obras, como o maravilhoso David Copperfield (1850), de Charles Dickens (1812-1870) e o mais contemporâneo O Apanhador no Campo de Centeio (1951), do norte-americano J. D. Salinger (1919-2010), só para citar dois importantes romances do cânone literário universal.
Talvez inspirando-se nessa origem "goethiana", o então jovem e também alemão Thomas Mann (1875-1955) publicou em princípios de 1901 o seu primeiro romance: Os Buddenbrook, que coletiviza a tese de um romance de formação com enfoque em quatro gerações da família que nomeia a obra.
A família Buddenbrook vivia no norte da Alemanha, numa região portuária (inspirada na cidade de Lübeck, local onde Mann nasceu. Muitos personagens do romance apresentam semelhanças históricas com personalidades reais do local, inclusive). Em termos materiais, eles administravam uma firma que, em essência, fazia comércio de cereais e outros negócios diversos. São nítidas, nesse aspecto e em muitos outros, as semelhanças com grandes e pequenas empresas existentes no Sul do Brasil, as quais são "tocadas" pela mesma família de imigrantes e seus descendentes há décadas. A chamada "empresa familiar" ainda é um estilo de gestão extremamente comum em regiões de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul e, deixando-se de lado as ressalvas técnicas inerentes a forma de administração destes empreendimentos, ela é um dos grandes símbolos atuais do processo de imigração europeia iniciado no Brasil a partir de 1850.
Mas atendo-se a narrativa em si, diversos outros pontos saltam aos olhos do leitor d'Os Buddenbrook. O primeiro deles, e talvez o mais importante, é o aspecto material das relações entre os personagens, seja os da família Buddenbrook ou de seus "concorrentes", que travavam uma disputa na maioria das vezes velada entre si por poder político e econômico. Ao leitor mais sensível e desacostumado com este modus operandi, vai um alerta: os personagens e até mesmo o narrador onisciente prezam pelos elementos materiais (comerciais e financeiros) em praticamente todos os grandes momentos narrados. Casamentos, funerais, divórcios... Todos os acontecimentos que abalavam a família Buddenbrook geravam estilhaços materiais e o sentimentalismo ficava num segundo plano. O mérito disso é que esse aspecto sentimental, pelo narrar da história, fica restrito ao leitor.
Este apego material está longe de ser uma crítica: é, na verdade, um elemento que fortalece o compromisso do autor com a saga familiar dos Buddenbrook, que se concentra por praticamente todo o século XIX. O povo alemão, especialmente o que não era de grandes metrópoles da época e que ainda o são hoje em dia (como Hamburgo, Frankfurt, Munique e Berlim, que aparecem na narrativa) preza muito por atitudes mais conservadoras e práticas. E se isso já era assim naqueles tempos, há de se imaginar que as duas guerras mundiais, as quais o povo alemão foi um dos protagonistas mais sofredores, só reforçaram essa ideia de força material como escudo contra as dificuldades. É uma característica que precisa não ser condenada, mas valorizada, especialmente pela influência construtiva que os imigrantes alemães exerceram e exercem no Brasil.
Na obra, o materialismo guia os protagonistas: os irmãos Thomas e Antonie (Tony) Buddenbrook, pertencentes à terceira geração narrada. Thomas (Tom) é patriarca familiar em grande parte do romance: é ele quem mais se "forma" dentro da definição supracitada de Bildungsroman, já que quando o livro se inicia, ele tinha apenas sete anos. Dono de uma personalidade tipicamente alemã, conservador, metódico e correto, Tom é o cerne prático do livro, aquele personagem que executa ações mais previsíveis, que dificilmente se abala, mas que, com o passar das páginas, vai revelando o preço que alguém em sua posição acaba tendo que pagar em função das responsabilidades familiares, sociais e empresariais as quais ele acaba assumindo.
Já Antonie, a irmã caçula de Tom, simboliza mais o viés emocional, agindo impensadamente em muitos momentos. Há leitores que têm em Tony a personagem preferida do livro: sua espontaneidade e desimpedimento moderado contrastam com o contexto geral do que a obra apresenta. Contudo, o fato de ela agir assim lhe traz consequências sérias, especialmente quando suas decisões são tomadas diante dos objetivos materiais pretendidos por aqueles que a circundam. Na verdade, percebe-se até mesmo que este desimpedimento que ela preza só serve para fins externos, de demonstrar uma superioridade questionável diante da sociedade que orbita a família. Prova disso é o entendimento comum (e não uma eventual dificuldade de relacionamento) que Tony desenvolve com o irmão mais velho.
Ao não explorar esse dualismo entre razão e emoção, dentre outros pontos, Thomas Mann ocupa as páginas do livro em descrever, de forma sistemática, a "previsão" jogada na cara do leitor no subtítulo de Os Buddenbrook. Tal subtítulo (Decadência de uma Família) soa desnecessário ao futuro leitor, que certamente lê o livro com uma expectativa totalmente diferente daquela que ele poderia ter se não houvesse este subtítulo exageradamente informativo. Assim, não é raro que o leitor durante a leitura se questione e imagine como esta derrocada irá ocorrer, ao invés de se deixar levar pela narrativa.
Obviamente, com o suceder das gerações de Buddenbrooks, outros personagens surgem: Christian, o irmão mais novo de Thomas, a qual entra em conflito constante com ele (talvez baseado no relacionamento de Thomas Mann com o irmão, o também escritor Heinrich Mann (1871-1950), a qual era marcado por vários desentendimentos), os pais e avós de Thomas, Gerda Arnoldsen (sua esposa), os "temíveis" Hangenström, rivais no comércio local, entre outros. Destes citados, os diálogos mais ásperos entre Thomas e Christian formam momentos de uma expectativa "novelística" e prendem a atenção com facilidade.
Quando se fala em Thomas Mann, é impossível não falar em A Montanha Mágica (1924), livro que narra a vivência de Hans Castorp num sanatório para tuberculosos situado, presumivelmente, nos Alpes Suíços. É um livro marcante pelas divagações filosóficas e pela sensação de desapego ao tempo que ele traz. A comparação com Os Buddenbrook não é tão absurda, ainda mais se for considerada a similaridade de tamanho entre as duas obras. Mas enquanto A Montanha Mágica traz reflexões perenes quando a narrativa não está "andando", em Os Buddenbrook o que acontece é uma preocupação acentuada com descrições: são páginas e páginas descrevendo situações e locais aparentemente normais, as quais muitas vezes freiam a empolgação da leitura. Desse modo, o livro é bem cansativo e torna plausível a hipótese, quando se compara com A Montanha Mágica, de que o tamanho não é um atributo essencial para que uma experiência literária seja estafante: a narrativa se prende em descrições minuciosas de locais, como salas de estar, salões, praias (o que em tese seria mais interessante se houvesse um olhar mais prático para o mar, por exemplo), hotéis... Fica-se com a impressão de que ou o livro poderia ter pouco mais da metade das 680 páginas na excelente edição da Companhia das Letras ou de que o autor poderia ter ocupado mais estas "pausas" narrativas para tecer reflexões com maior viés prático e/ou filosófico. Mas dadas as circunstâncias naturais da publicação (não se pode esquecer que Mann tinha apenas 25 anos quando finalizou Os Buddenbrook), estes detalhes precisam ser ponderados.
Nesse sentido, chama a atenção que quando Thomas Mann venceu o Nobel de Literatura em 1929, a Academia Sueca mencionou Os Buddenbrook (e não A Montanha Mágica) como uma justificativa para o prêmio. Isso, indubitavelmente, dignifica a obra como a descrição (com traços autobiográficos de Mann, que curiosamente era filho de uma brasileira que por aqui viveu até os cinco anos de idade) de uma realidade que prezava pelos valores familiares, materialistas e culturais de toda uma sociedade interiorana alemã do século XIX (as quais foram trazidos ao Brasil com os imigrantes já citados e estão lamentavelmente quase esquecidos nos dias de hoje).
Os Buddenbrook, em suma, é um livro que relata uma significativa parcela da burguesia alemã dos fins do século XIX, mas que passa longe de desenvolver um relato solidamente social daqueles tempos: é a linha narrativa de uma família alemã tradicional e sua decadência. Apesar dos problemas em termos de entretenimento, a primeira obra de Thomas Mann presta um expressivo serviço à língua alemã, de acordo com informações do posfácio da edição supracitada, escrito por Helmut Galle, professor da USP. Esta expressividade linguística se dá através do uso de inúmeros dialetos locais, as quais naturalmente não puderam ser traduzidos pelo trabalho de tradução de Herbert Caro (1906-1991). Deste modo, apesar das ressalvas (de ordem pessoal, diga-se), Os Buddenbrook simboliza bem uma época e uma nação e precisa ser ressaltado por isso.