Rick 27/12/2016
Não tenho intenção de escrever tanto uma resenha quanto um atestado de qualidade, na verdade, não tinha planos de escrever nada, mas o fim de ano se aproxima, e com ele a lembrança de todas as leituras e infinitas sensações que elas me proporcionaram. Na esteira desse espírito saudosista, me peguei pensando que entre todas as páginas desse ano, uma obra em particular me tocou profundamente, quase me obrigando a comentar, falo de Strangers in Paradise, do americano Terry Moore, um quadrinho inesquecível, na melhor tradição do realismo.
Deixe-me explicar. Todos tem alguma concepção do realismo, seja pelo falatório do senso comum ou pelas lembranças fragmentárias do ensino médio, mas esse termo, realismo, foi primeiramente empregado como definição estética no século XVIII, posteriormente, consagrou-se como terminologia exclusivamente literária, mas o imaginário popular não demorou a difamar esse novo movimento, que perdeu o seu sentido em azedas controvérsias e disposições monótonas da academia. Estudantes hoje aprendem a pensar nessa escola literária como árida e enfadonha, mas Strangers in Paradise resgata o realismo e a realidade "verité humaine" de Rembrandt, que transborda dos desenhos e preenche todos os temas do texto. Machismo, corrupção, falta de caráter, injustiça, amor, paixão, a realidade aqui é tratada com irreverência, apreciada em seus extremos mais belos e repulsivos.
Uma expressão narrativa assim, desapaixonada, sem idealismo, embora por vezes pareça cínica, guarda em si um panorama quase fidedigna do vasto espectro de experiências humanas. Nesse sentido, Terry Moore está mais próximo dos realistas franceses do que de seus contemporâneos do gênero, e não seria exagero comparar a agudez de sua crítica e a verossimilhança dolorosa de suas personagens à Comédia Humana de Balzac.
Para alguns, pode parecer estranho que o conjunto da obra mais realista e tocante que li nesse ano tenha vindo não de um romance obscuro da Europa oriental, nem de um filme francês e muito menos de algum poeta da boca do inferno, como haveriam de esperar aqueles de tendência crítica mais "rebuscada". Ao invés disso, veio de um quadrinho, profundamente sensível e arguidor para os dilemas de um mundo em ruínas.