Victor Dantas 28/02/2021
Uma expressão da ocidentalização na Rússia. #42
Escrito em 1866, "O Jogador" é um romance da segunda fase (pós-Sibéria) de Fiódor Dostoiévski.
Na época da sua publicação, Dostoiévski estava vivenciando o estrelato, o sucesso como escritor, pois havia acabado de publicar Crime e Castigo (1865), no entanto, todo esse sucesso trouxe consequências para o autor.
Devido ao sucesso de sua obra tanto na Rússia quanto na Europa, Dostoiévski passou a viajar para o estrangeiro constantemente para entrar em contato com outros intelectuais, mas também para aproveitar os benefícios da sua fama de escritor, e uma das formas que ele encontrou para aproveitar foram as apostas em jogos de azar. Passou a visitar vários cassinos europeus, principalmente, na Alemanha (onde o romance se passa).
O vício pelos jogos levou o Dostoiévski a quase total falência, ficou endividado, e para poder pagar tais dívidas, assinou um contrato para escrever um romance em menos de seis meses, eis que surge "O Jogador". Para mais informações recomendo ler apresentação feita pelo Rubens Figueredo na edição da Penguin-Companhia.
Bom, sendo assim, "O Jogador" assim como outros romances do autor, possuí inspirações autobiográficas, nesse caso, o vício do autor por jogos de azar.
O enredo se apresenta da seguinte forma:
Aleksei Ivánovitch, é um jovem de 20 anos, professor recém formado, de origem humilde, e está de volta à cidade de Roletemburgo (cidade fictícia alemã), onde ele presta seus serviços a um general como preceptor de seus filhos, Micha e Nádia.
Tanto a família do general, como o próprio Aleksei, estão hospedados num hotel de Roletemburgo, e ao lado deste hotel, fica um cassino, onde aristocratas de toda Europa se dirigem para fazerem suas apostas.
Aleksei costuma visitar constantemente o salão de jogos, mas sempre fica no lugar de observador, e não de jogador.
Mas, isto está prestes a mudar quando Aleksei vê no jogo a oportunidade melhorar sua vida financeiramente, e assim conquistar a atenção da filha mais velha do general, Polina Aleksándrovna, por quem ele nutre uma paixão até então não declarada.
Mas, será que o Aleksei conseguirá manter seu foco nesse objetivo por muito tempo?
Será que ele vai manter-se no controle do seu jogo, ou o jogo que vai controlá-lo?
O dinheiro que ele ganhar no jogo será suficiente para que a Polina o considere?
Seria Polina seu único motivo para jogar?
Bom, após essa breve sinopse, eu sempre gosto de elencar os elementos que aparecem na obra, tanto aqueles que são expostos no texto e os que ficam nas entrelinhas, a disposição da interpretação do leitor. E "Jogador" possui muito dos dois.
1) A Narrativa:
Por ser um romance publicado na sua segunda fase literária (pós-Sibéria), a narrativa de "O Jogador", assim como os romances que lhe antecedem une o drama com a ironia ácida, no entanto, cada romance possui sua peculiaridade, e em "O Jogador" não é diferente.
As cenas são descritas progressivamente, como um "frenesi textual", o que forma uma atmosfera textual que remete a tensão de um jogo de azar (estamos sempre calculando a próxima jogada).
Outrossim, o livro é narrado em primeira pessoa, sendo assim, é a mente do protagonista que orienta o leitor para cada situação, e muita das vezes o nosso protagonista ele muda de raciocínio muito rápido, logo, a cena já se modifica, a entrada de outro personagem.
2) Personagens:
É muito difícil a gente ler um romance do Dostoiévski e nenhum personagem marcar a nossa experiência de leitura. Independente se for protagonista ou personagem secundário.
O que acontece é que o Dostoiévski atribuiu a todas as personagens uma utilidade.
O seu núcleo de personagens é como um quebra-cabeça, cada peça é importante.
Ou seja, existe uma equidade entre suas personagens.
Em "O Jogador" além do nosso protagonista, Aleksei Ivánovitch temos os personagens secundários: Polina Aleksándrovna, o General, Mr. Astley, Des Grieux, Mademoiselle Blanche, Antonida Vassílievna (a vovó).
Em cada um deles, existe um certo estereótipo proposital que sustenta a trama do romance (a Polina virtuosa, o General autocentrado, o inglês reservado e culto, o francês inconveniente, a vovó ranzinza). Bom, é só isso que eu tenho a dizer rsrs.
Particularmente, a personagem que mais me cativou foi a Vovó, as cenas em que ela aparece me foram mais interessantes, até mesmo engraçadas.
3) Contexto Histórico e Sociocultural
Apresentação do Rubens Figueredo é muito precisa nesse sentido, pois ele faz um breve panorama do que vamos encontrar no texto do Dostoiévski em relação à Rússia daquele tempo específico.
Apesar da trama não ter a Rússia como espaço, e sim a Alemanha, as referências históricas que aparecem no enredo, nos diálogos das personagens, nos orienta diretamente para o que estava ocorrendo na Rússia naquele momento.
E pelo título da minha resenha você já deve ter identificado qual é esse contexto.
Bom, enquanto o Dostoiévski estava transitando na Europa, devido a sua fama como escritor, na Rússia, já estava ocorrendo um processo de ocidentalização que viria a se intensificar anos posteriores.
Um dos principais campos que esse processo era mais evidente, era a arte e a cultura.
A Rússia já utilizava, por exemplo, o francês como segunda língua oficial, reservada apenas a aristocracia como um distintivo de classe e poder. Somado a isso, a literatura estrangeira mais consumida era francesa e alemã, superando até mesmo a literatura local.
Portanto, esse processo visto pelos olhos do Dostoiévski e outros intelectuais russos, era nocivo para o povo russo, pois significava a perda de identidade, o enfraquecimento da "Alma Russa", da "Mãe Rússia".
Essa Mãe Rússia que aparece em toda obra do Dostoiévski a partir da segunda fase, como a Mãe salvadora da humanidade, a Mãe superior a essa nação europeia pagã, violenta, hipócrita.
Dito isso, personalidade do nosso protagonista é formada de um nacionalismo intenso, em diversos ele se refere ao povo russo, ao sangue russo com um orgulho e um sentimento de superioridade, junto a ele, está a vovó Antonida, que é nacionalista e conservadora declarada. Em muitos diálogos, tanto o Aleksei quanto a Antonida, ridicularizam a personagem Des Grieux, que é um homem francês.
"A gentalha, de fato, joga de maneira muito sórdida. (...) Olhe a[i, mais gentalha chegando! Na maioria, franceses" (p.33).
Aliás, por conta dessa personagem, Des Grieux, e da Mademoiselle Blanche, temos muitos diálogos e expressões em francês no texto (se você for um leitor de francês pode até treinar as expressões rsrs).
Outrossim, temos ainda a crítica ao processo de industrialização e urbanização que a Europa ocidental estava vivenciando, enquanto a Rússia permanecia nos bastidores do conservadorismo, uma sociedade atrasada, rural, agrícola.
A crítica mais evidente é a acumulação de riqueza material dos europeus, o amor e desejo pelo dinheiro, e o consumo por coisas supérfluas. O dinheiro é mencionado em todos os diálogos, distintas moedas europeias são citadas pelas personagens.
O Aleksei e a Antonida, em vários momentos crítica e despreza o costume do europeu de acumular sempre, e não gozar da vida: comer e beber o que gosta, fazer caridade com os menos abastados, partilhar a riqueza com amigos e familiares que passam dificuldades.
4) O Jogo: quem controla quem?
Além das reflexões que sobre sociedade russa, "O Jogador" fez eu questionar muito sobre a real importância do jogo na vida do Aleksei, se para ele o jogo era uma forma de afirmação da sua existência e importância diante os outros a sua volta.
Afinal, ele passa a ser conhecido não por sua personalidade, ou sua profissão de professor, mas sim a de jogador, ou seja, o jogo poderia determinar tanto sua ascensão quanto sua ruína.
Por ser um jovem de 20 anos, uma geração nova, existe também aquela expectativa e pressão da sociedade para que ele se torne um homem extraordinário, um exemplo a ser seguido, e o jogo de certa forma, distancia/ameniza essa pressão e expectativa, uma fuga.
"Quer dizer, quem sabe eu também seja um homem digno, só que não sei me comportar com dignidade. A senhora entende que pode ser assim? Mas todos os russos são assim mesmo, e quer saber por quê? É porque os russos são dotados de maneira rica e diversificada demais para aqueles que eles encontrem, logo de cara, uma forma adequada para si" (p.55).
Por fim, são esses os aspectos que socioculturais que se destacam no enredo e que implica debates e reflexões.
Vejo muita gente com dúvidas por onde começar a obra de Dostoiévski, e eu acho que o "O Jogador" é um bom começo, mas tendo em vista que estamos lendo uma obra da segunda fase do autor.
É uma trama envolvente, com diálogos até engraçados e um enredo de certa forma, cosmopolita.
Boa leitura!