Carla.Parreira 21/10/2023
Os arquétipos e o inconsciente coletivo
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Eis um apanhado geral do que mais me atraiu na leitura: O inconsciente é considerado geralmente como uma espécie de intimidade pessoal encapsulada, mais ou menos o que a Bíblia chama de "coração", considerando-o como a fonte de todos os maus pensamentos. Nas câmaras do coração moram os terríveis espíritos sanguinários, a ira súbita e a fraqueza dos sentidos. Este é o modo como o inconsciente é visto pelo lado consciente. A consciência, porém, parece ser essencialmente uma questão de cérebro, o qual vê tudo, separa e qualifica isoladamente. A consciência define inclusive o inconsciente, encarado sempre como o próprio inconsciente. Por isso pensa-se por isso, de um modo geral, que quem desce ao inconsciente chega a uma atmosfera sufocante de subjetividade egocêntrica, ficando neste beco sem saída à mercê do ataque de todos os animais ferozes abrigados na caverna do submundo anímico. Na consciência, somos nossos próprios senhores; aparentemente somos nossos próprios "fatores". Mas se ultrapassarmos o pórtico da sombra, aterrorizados perceberemos que nós somos ?objetos de fatores?. Saber isso é decididamente desagradável, pois nada decepciona mais do que a descoberta de nossa insuficiência. É até mesmo um motivo de pânico primitivo, porque significa questionar a supremacia da consciência em que acreditamos e a qual protegemos medrosamente, pois na realidade ela é o segredo do sucesso humano. Mas, uma vez que a ignorância não é motivo de segurança, sendo pelo contrário uma agravante da insegurança, é melhor, apesar do medo, saber o que nos ameaça. A formulação correta da questão já é meio caminho andado na solução de qualquer problema. Em todo caso é certo que o maior perigo reside na imprevisibilidade da reação psíquica. É inútil decorar uma lista de arquétipos. Estes são complexos de vivência que sobrevêm aos indivíduos como destino e seus efeitos são sentidos em nossa vida mais pessoal. As interpretações só são necessárias aos que não entendem. Só o incompreensível tem que ser significado. O homem despertou num mundo que não compreendeu; por isso quer interpretá-lo. A libertação dos opostos pressupõe uma equivalência funcional dos mesmos, o que é contraditório para o sentimento cristão. O perigo principal é sucumbir à influência fascinante dos arquétipos, o que pode acontecer mais facilmente quando as imagens arquetípicas não são conscientizadas. Caso exista uma predisposição psicótica pode acontecer das figuras arquetípicas - as quais possuem certa autonomia - escaparem do controle da consciência, alcançando uma total independência, ou seja, gerando fenômenos de possessão. As coisas que vem à tona brutalmente nas doenças mentais permanecem ainda veladas na neurose, mas não deixam de influenciar a consciência. Quando, no entanto, a análise peneira no pano de fundo dos fenômenos da consciência, ela descobre as mesmas figuras arquetípicas que avivam os delírios psicóticos. Finalmente, numerosos documentos histórico-literários comprovam que tais arquétipos existem praticamente por toda parte, tratando-se, portanto, de fantasias normais e não de produtos monstruosos de insanidade. O elemento patológico não reside na existência destas ideias, mas na dissociação da consciência que não consegue mais controlar o inconsciente. Em todos os casos de dissociação é, portanto, necessário integrar o inconsciente na consciência, ou seja, o "processo de individuação". Este processo corresponde ao decorrer natural de uma vida em que o indivíduo se torna o que sempre foi. ? porque o homem tem consciência, um desenvolvimento ou processo desta espécie não decorre sem dificuldades; muitas vezes será perturbado pela sua múltipla personalidade, pois a consciência sempre tende a se desviar ou fugir repetidamente da base arquetípica instintual, pondo-se em oposição a ela. Enquanto o inconsciente pessoal consiste em sua maior parte de complexos, o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de arquétipos. O conceito de arquétipo, que constitui um correlato indispensável da ideia do inconsciente coletivo, indica a existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo tempo e em todo lugar. A pesquisa mitológica denomina-as "motivos" ou "temas". Há tantos arquétipos quantas situações típicas na vida. Intermináveis repetições imprimiram essas experiências na constituição psíquica, não sob a forma de imagens preenchidas de um conteúdo, mas precipuamente apenas formas sem conteúdo, representando a mera possibilidade de um determinado tipo de percepção e ação. Quando algo ocorre na vida que corresponde a um arquétipo, este é ativado e surge uma compulsão que se impõe a modo de uma reação instintiva contra toda a razão e vontade, ou produz um conflito de dimensões eventualmente patológicas, isto é, uma neurose. Um dos maiores arquétipos é o materno. Ele é a base do complexo materno. Os efeitos do complexo materno diferem segundo ocorrerem no filho ou na filha. Efeitos típicos no filho são o homossexualismo, o donjuanismo e eventualmente também a impotência. No homossexualismo o componente heterossexual fica preso à figura da mãe de modo inconsciente; no donjuanismo, a mãe é procurada inconscientemente "em cada mulher". No caso da filha o complexo materno é mais puro e sem complicações. Trata-se nele, por um lado, de uma intensificação dos instintos femininos provindos da mãe, e, por outro, de um enfraquecimento e até mesmo de uma extinção dos mesmos. O complexo materno na filha, ou estimula efetivamente o instinto feminino, ou o inibe na mesma proporção; no filho, porém, o instinto masculino é lesado por uma sexualização anormal. Um complexo só é realmente superado quando a vida o esgota até o fim. A fenomenologia do arquétipo da criança é composta pelo abandono, a invencibilidade e o hermafroditismo. O estágio inicial do infantilismo pessoal mostra a imagem de uma criança "abandonada", ou seja, "incompreendida" e tratada injustamente, a qual tem pretensões exageradas. O arquétipo do herói manifesta-se em uma inflação correspondente: a pretensão exagerada torna-se convicção de que se é algo especial; ou a impossibilidade de satisfazer a pretensão é prova da própria inferioridade, o que favorece o papel do herói sofredor (numa inflação negativa). Apesar de serem contraditórias ambas as formas são idênticas: à megalomania consciente corresponde a uma inferioridade compensatória inconsciente; a inferioridade consciente, por sua vez, corresponde a uma megalomania inconsciente (nunca encontramos a megalomania sem a inferioridade e vice-versa). Conteúdos neuróticos podem ser integrados sem prejudicar essencialmente o eu, o que não acontece com as ideias psicóticas. Elas permanecem inacessíveis e a consciência do eu é sufocada por elas. Estas têm até mesmo uma tendência de sorver o eu em seu "sistema". Tais casos provam que em certas circunstâncias o inconsciente é capaz de assumir o papel do eu. As consequências dessa inversão acarretam insanidade e confusão, pois o inconsciente não é uma segunda personalidade com um funcionamento organizado e centralizado, mas provavelmente uma soma descentralizada de processos psíquicos. Quando se dá um estado emocional intenso, dizemos ou fazemos coisas que ultrapassam a medida usual. Não é preciso muito: amor e ódio, alegria e tristeza, bastam muitas vezes para acarretar uma troca entre o eu e o inconsciente. Até mesmo ideias muito estranhas podem apoderar-se em tais circunstâncias de pessoas normalmente sadias. Grupos, comunidades e até mesmo povos inteiros podem ser tomados por epidemias psíquicas. A autonomia do inconsciente começa onde se originam as emoções. Estas são reações instintivas e involuntárias que perturbam a ordem racional da consciência com suas irrupções elementares. Os afetos não são "feitos" através da vontade, mas acontecem. No afeto aparece às vezes um traço de caráter estranho até mesmo à pessoa que o experimenta, ou conteúdos ocultos irrompem involuntariamente. Quanto mais violento for um afeto, tanto mais ele se aproxima do patológico, isto é, daquele estado em que a consciência do eu é posta de lado por conteúdos autônomos, antes inconscientes. Enquanto o inconsciente se encontra em um estado de dormência, parece que essa região oculta nada contém. Enquanto pensamos em períodos de anos, o nosso inconsciente pensa e vive em períodos de milênios. Normalmente a colaboração do inconsciente com o consciente ocorre sem atritos e perturbações, de modo que a existência do inconsciente nem é percebida. Se o indivíduo ou o grupo social se desvia demasiado do fundamento instintivo, vivenciará todo o impacto das forças inconscientes. A colaboração do inconsciente é sábia e orientada para a meta, e mesmo quando se comporta em oposição à consciência, sua expressão é sempre compensatória de um modo inteligente, como se estivesse tentando recuperar o equilíbrio perdido. A identificação com o inconsciente significa certa fragilidade da consciência e nisso reside o perigo. A identificação não é "feita" por nós, não "nos identificamos", mas sofremos inconscientemente o tornar-nos idênticos a um arquétipo, isto é, somos por ele possuídos. Em casos graves é mais importante fortificar previamente o eu do que compreender e assimilar os produtos do inconsciente.