Higor 16/05/2024
"1001 LIVROS PARA LER ANTES DE MORRER": LIVRO 15
Impactado com "Inferno", primeira parte de "A divina comédia", decidi estender meu fascínio e ler mais um autor da chamada trindade italiana, que, além do próprio Dante, conhecido como o pai da língua italiana, é composto também por Boccaccio e Petrarca.
Com a leitura de "Decamerão", obra-prima de Boccaccio e célebre livro do idioma vernacular florentino, no entanto, a empolgação e a contemplação não se fizeram presentes como em "A divina comédia", embora ambos não possam ser, de modo geral, comparados. Digo isso porque o próprio Boccaccio tem sua importância na literatura italiana e universal, não apenas como o principal propagador de Dante, mas é considerado como o pai da prosa italiana.
De modo geral, "Decamerão", que do grego significa 10 dias, narra a jornada de 10 dias de sete homens e três mulheres, jovens que saem de Florença e se refugiam distantes de qualquer contato com outras pessoas, no intuito de escapar do contágio e dos sintomas da Peste Negra - que assolava a cidade e o mundo da época, por volta de 1340.
Como forma de ocupação do tempo ou alternativa ao tédio, o grupo concorda em participar de um ritual: todos os dias, ao início da tarde, eles devem se reunir e, cada um, contar uma história, por supervisão de um “rei”, um dos membros ali reunidos eleito diariamente e com o reinado de um dia, onde ele deve escolher o tema do dia e conduzir as histórias. A partir de então, temos um denso compilado de 100 contos, 100 histórias dos mais diversos assuntos, que se permitem transitar entre os mais variados temas, um revezamento entre o humorístico, o bucólico apreciado com limitações entre o grupo, passando pelo religioso, pelo trágico e pelo erotismo da época.
Quem leu "O livro das 1001 noites", entenderá perfeitamente a estrutura de "Decamerão": o quadro-moldura, a metalinguagem, a história dentro da história, mesmo que com suas diferenças, afinal, aqui cada um narra sua história, com início, meio e fim, e ao final da última narração do dia, o grupo se dispersa e interage e pratica outra atividade. Com Sheherazade não, pois a cada noite havia um suspense ao terminar a história de maneira abrupta, para que ela sobrevivesse mais um dia.
Acontece que, o mesmo problema de "O livro das 1001 noites" me entediou em "Decamerão", pois embora empolgado de início, com o passar das noites e dos contos, eu não estava mais interessado nas histórias narradas, e sim nos personagens que as narravam. Eu estava mais interessado, sinceramente, em saber como seria a 1001ª noite, a última, de Sheherazade, e se tudo ficaria bem no final; da mesma forma, eu queria saber se, ao final do 10º dia de histórias e do 100º conto, se os personagens regressariam para Florença e como lidariam com o mundo devastado pela Peste.
Então, o acúmulo de histórias, assim como de noites, enfadou-me a ponto de eu postergar a leitura do conto, afinal, seria mais uma história, mas não a história de um dos personagens do grupo, ou de como Florença e os florentinos se comportavam em meio à tragédia.
Claro que, ao ler as narrativas do grupo, tem-se o conhecimento de como a população da época se comportava, afinal, além de dizimar a população, a epidemia destruiu todas as normas sociais e os hábitos e costumes que eram comuns ou esperados à população da época. Justamente por isso, por ilustrar os costumes e cultura da época, assim como os preconceitos e atitudes dos habitantes daquela cidade já tão criticada por Dante, o livro tem sua importância no meio literário.
"Decamerão", apesar de seu cunho religioso, também é notável por reforçar o conceito já trabalhado por outros autores da época, do Humanismo, em que o divino perde espaço e passa a dividir suas ideias com o pensamento de que o homem é responsável pelas suas próprias atitudes, graças à racionalidade.
Ainda assim, por mais primorosa e impactante literatura para a época e para os nossos dias, afinal, "Decamerão" estabeleceu a prosa e as narrativas curtas, inspirando diversos outros livros posteriores, mesmo que indireta ou não reconhecidamente, encarar a coletânea de cabo a rabo, lendo os 100 contos de maneira rápida e contínua, pode não ser proveitoso.
Como era de se esperar, alguns contos se sobressaem ante outros, como o primeiro conto do primeiro dia, que narra as aventuras maldosas de um homem terrível e mau em vida, mas que, ao morrer, consegue a proeza de ser canonizado e se tornar um santo muito cultuado, ou o nono conto do sétimo dia, de um homem rico que corteja uma bela princesa, mas que não é recíproco; pobre de repente, ele faz um banquete à princesa com tudo o que tem e que ela, curiosamente, queria comprar dele: um falcão. Mas a maioria é levada ao esquecimento, seja pelas repetições, pelas aventuras e desventuras pouco empolgantes ou que, de interessantes, tornaram-se tediosas.
Fonte de inspiração para tantos outros livros e ilustres clássicos, como "Contos da Cantuária" - livro 16 do projeto 1001 livros... - e Martin Lutero, assim como lembrado na cultura pop, de jogos eletrônicos ao cinema e televisão, ou ópera e teatro, "Decamerão" deve ser lido com calma, um conto por dia, uma noite por vez, sem pressa em finalizá-lo, apesar de ansiar para, além de a pandemia acabar, o grupo de amigos ficar bem.
Este livro faz parte do projeto "1001 livros para ler antes de morrer".
LIVROS ANTERIORES DO PROJETO
LIVRO 01 - A epopeia de Gilgamesh
LIVRO 02 - Ilíada
LIVRO 03 - Odisseia
LIVRO 04 - Fábulas de Esopo
LIVRO 05 - Teatro Grego
LIVRO 06 - Dao De Jing
LIVRO 07 - Eneida
LIVRO 08 - Quéreas e Calírroe
LIVRO 09 - O asno de ouro
LIVRO 10 - Metamorfoses
LIVRO 11 - Antologia poética clássica chinesa
LIVRO 12 - As mil e uma noites
LIVRO 13 - O livro do travesseiro
LIVRO 14 - A divina comédia