José Ricardo 06/12/2015
"A existência precede a essência"
Jean Paul-Sartre (1905-1980) foi um dos ícones do Existencialismo. Além de filósofo, dedicou-se à literatura e teve intenso engajamento político. Chegou a ser contemplado com o Prêmio Nobel Literatura em 1964, mas se recusou recebê-lo.
“A Náusea” é um romance publicado em 1938. O título original era “Melancolia”, e foi inspirado na gravura de Albrecht Dürer (1471-1528). Porém, foi alterado para “A Náusea” por sugestão do editor.
Em “A Náusea”, Sartre apresenta as bases de seu “Existencialismo”, o qual difere de outros filósofos existencialistas, como Kierkegaard e Gabriel Marcel, por exemplo.
O enredo traz Antoine Roquentin, um historiador, com cerca de 30 anos de idade, que, após viajar por vários países e ter um relacionamento amoroso rompido, junta suas economias e decide ir até a cidade fictícia de Bouville, onde pretende escrever uma biografia do Marquês de Rollebon, um suposto aristocrata que vivera no Século XVIII.
“A Náusea” tem formato de diário e se passa em 1932. Logo no início, há uma “advertência” ao leitor, "explicando" que os manuscritos foram encontrados aleatoriamente, e a publicação é fiel ao inteiro teor, o que confere certo grau de credibilidade à narrativa.
No diário, Antoine Roquentin registra não apenas suas pesquisas e o decorrer da elaboração da biografia, mas também e, principalmente, suas impressões de tudo o que ele vê e sente no dia a dia de Bouville. E é aqui que reside o ponto alto da obra. Roquentin é um sujeito introspectivo e perspicaz. No momento, busca uma razão de viver. Ele já tem a vida ganha diante de suas economias e após ter um amor frustrado, acaba por se encontrar consigo mesmo. Este encontro, porém, vai se tornar mais intenso quando a pesquisa sobre Rollebon passa a entendiá-lo.
Esse é o pano de fundo que Sartre encontrou para discorrer, figurativamente, sobre seu modo de ver o Existencialismo, segundo o qual “a existência precede a essência”. Mas como entender isso? Pois bem, vale lembrar que o existencialismo sartriano é ateu. Assim, não há Deus, nem finalidade nas coisas ou na vida. O homem primeiro existe e, ao tomar consciência desta existência, pode dar sentido àquilo que está à sua volta. Nisto reside a liberdade humana. O existencialismo de Sartre, portanto, baseia-se em três pilares: existência, liberdade e essência. Por isso, ele diz que “o homem está condenado a ser livre.” Significa dizer: em meio à contingência de sua existência, o ser humano tem consciência disto e liberdade para atribuir sentidos à sua realidade e, com isso, construir a si mesmo. Tem a possibilidade de escolher o que será (essência) a partir de sua consciência; de sua existência. A existência é algo que já está pronto; o ser humano, não. O homem existe; por outro lado, sua essência será uma constante busca (livre) para moldar a si próprio. Entretanto, esta busca é angustiante em meio às múltiplas possibilidades e sem um mapa seguro do caminho a trilhar. Enfim, para Sartre não há determinismo.
E por que o Marquês de Rollebon entendia “Sartre”. É simples. Ao realizar suas pesquisas, o protagonista percebe que Rollebon é um sujeito que acabou por se confundir com seu personagem; com a figura que ele mesmo (Rollebon) criou para figurar em sociedade. Uma pessoa que se perdeu em si; que não encarou a si e à realidade de sua existência; da vida. Para Sartre: Rollebon é uma pessoa de “má-fé”.
Todavia, a expressão “má-fé” em Sartre tem um significado peculiar. Como dito acima, escolher, decidir causa angústia. Ninguém pode escolher pelo outro, somente o próprio indivíduo pode escolher por si. E isto não é agradável. Por isso, Sarte diz que “o homem está condenado a ser livre”. Ele não tem como fugir da liberdade de decidir.
Nesse contexto, diante do temor de escolher, da fraqueza em decidir, da angústia em tomar posições, emerge o homem de “má-fé”. Homem de “má-fé” é aquele que foge de sua própria condição e passa a viver um personagem. Sucede que este personagem é uma dissimulação, uma mentira, um abandono. Uma forma de tentar burlar a realidade da vida; vida que exige uma enfrentamento do tédio, da melancolia, da náusea. Para decidir, o ser humano precisa olhar para si, para a realidade da vida, para o acaso, para a incerteza, para probabilidade, para os riscos, para as possibilidades, para o imprevisto, para o incerto. Deve encarar sua natureza e condição humana e, somente assim, encontrar na resignação e na inventividade, um sentido que o liberte de sua liberdade.
Esse tom reflexivo, seco e duro acerca da vida causa aquilo que Sartre dá o nome de “Náusea” no ser humano, sentimento que incomoda, mas que, ao mesmo tempo, é o itinerário para se ficar verdadeiramente de pé. O livro é repleto de frases que retratam não só o sentimento de fuga (“má-fé”), mas também de “Náusea”. Veja algumas:
“as pessoas que vivem em sociedade aprenderam a se ver nos espelhos tal como aparecem a seus amigos.”
“eles para existir, precisam estar reunidos.”
“quando fica sozinho, esse homem dorme.”
“que ocupação estranha: não parece um jogo, nem um rito, nem um hábito. Acho que fazem isso simplesmente para encher o tempo. Mas o tempo é muito longo, não se deixa encher.”
“não posso fugir de mim mesmo.”
“Acabo de descobrir, com brusquidão e sem razão aparente, que menti a mim mesmo durante dez anos.”
“um homem é sempre um narrador de histórias, vive rodeado por suas histórias e pelas histórias dos outros, vê tudo o que lhe acontece através delas; e procura viver sua vida como se a narrasse. Mas é preciso escolher: viver ou narrar. (...) Quando se vive, nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começos. Os dias se sucedem aos dias, sem rima nem razão: é uma soma monótona e interminável”.
“Esse Rollebon me irrita.”
“Não estou com fome, mas vou comer para passar o tempo.”
“Arrastaram suas vidas num topor, meio adormecidos, se casaram precipitadamente, por impaciência, e fizeram filhos ao acaso. Encontraram os outros homens nos cafés, nos casamentos, nos enterros. De quando em quando, apanhados num redemoinho, se debateram sem compreender o que lhes acontecia.”
“Que vou fazer de minha vida?”
“Lancei um olhar ansioso ao meu redor: só o presente, nada além do presente.”
“Rollebon já não existia. Se ainda restavam dele alguns ossos, existiam por si próprios, totalmente independentes dele.”
“Percorro a sala com os olhos. É uma farsa! Todas essas pessoas estão sentadas numa atitude séria; estão comendo. Não, não estão comendo: recobram suas forças para levar a bom termo a tarefa que lhes cabe. Cada uma delas tem sua pequena obstinação pessoal que as impede de perceber que existem; não há um só que não se julgue indispensável a alguém ou a alguma coisa.”
“Para suportar sua condição, a condição humana, precisa de muita coragem. O próximo instante pode ser o de sua morte.”
“Gostaria tanto de me abandonar, de esquecer de mim mesmo, de dormir. Mas não posso, sofoco: a existência penetra em mim por todos os lados, pelos olhos, pelo nariz, pela boca...”
“A Náusea não me abandonou e não creio que me abandone tão cedo; mas já não estou submetido a ela, já não se trata de uma doença, nem de um acesso passageiro: a Náusea sou eu”.
Engana-se, porém, quem pensar que “A Náusea” é uma obra pessimista. Não é. Muito pelo contrário! É uma obra de coragem, de força, de luta. Mostra uma realidade existencial aberta a significações a ser talhada pelo sujeito (subjetividade) como pressuposto à constituição de sua essência; uma essência forte. Para isso é preciso ter coragem. Deve-se exercer a liberdade e ter força para não agir de “má-fé”. É imprescindível olhar de frente para a “náusea” a fim de que cada indivíduo constitua a própria essência em meio à sua existência.
site: http://www.jrav.com.br/a-nausea-jean-paul-sartre/