Breno 19/01/2014
Leve, suave, profundo e belo
O quadrinho, ainda que até hoje poucos saibam, há muito já deixou de ser entretenimento barato pra crianças. Trata de coisas sérias, é belo como é bela qualquer arte. Nisto destacam-se as graphic novels, as bandes dessinès e o mangá.
O mangá, quadrinho japonês, deve não apenas não ser lido como um quadrinho americano. Deve ser contemplado, refletido, visto com paciência, quadro a quadro. Esta regra, claro, vale para o bom mangá, e não aquele puramente comercial que lota as bancas e aniversários da molecada e festivais de cultura japonesa.
Nausicaä do Vale do Vento é um bom mangá.
Lançado parcialmente pela Conrad no Brasil (os volumes restantes podem ser encontrados facilmente na internet, mas em inglês), aquela que é chamada a obra-prima de Hayao Miyazaki recebeu tratamento o mesmo tratamento VIP de suas edições estrangeiras: papel grosso em tom sépia, tamanho grande, uma boa impressão, belas capas coloridas e a reprodução de seus anexos. Nada de tamanho de gibi em papel jornal, como fez a Panini com Lobo Solitário.
A obra merece. Nausicaä, princesa de um país pequeno num futuro apocalíptico tecnológico e medieval -- tema típico da ficção japonesa -- tem um talento especial para lidar com os monstros que povoam a Terra após guerras que destruíram a civilização e contaminaram o meio ambiente, tornando o ar, o solo e a água impróprios para os humanos mas não para insetos gigantes e fungos tóxicos.
Em meio a uma guerra entre as nações humanas sobreviventes, o talento único de Nausicaä parece ser a chave para uma resposta há muito tempo procurada: como tornar o mundo saudável novamente para todos, terminando com a fome e com a poluição.
Nausicaä, escrito no começo da década de 80, é claramente uma ou duas ou mais décadas visionário, porque fala de ecologia sem ser ecochato e é feminista sem ser opressivo ou masculinizante. A princesa, em especial, tem a caracterização típica de Myiazaki: jovem, forte, decidida, focada, feminina. Não é masculinizada mas tampouco precisa de um homem para lhe fazer as coisas ou para lhe dizer o que fazer.
Por que, então, lhes disse que Nausicaä é um bom mangá? Decididamente o roteiro de Miyazaki não é sério o bastante como o da típica Graphic Novel americana ou das bandes dessinès francesas; tampouco é pop como os super-heróis de qualquer nacionalidade, nem cult como os fumetti italianos.
Acho que é pela leveza.
A dedicação que Miyazaki demonstra a cada painel de cada página de Nausicaä é admirável. Não salta aos olhos como o mundo fantástico de Moebius e nem tem o esmero anatômico dos velhos americanos, tampouco o forte contraste do chiaroscuro destes mesmos mestres. Na verdade sequer tem o mesmo impacto que outros famosos japoneses, cult ou pop, de Lobo Solitário a Naruto ou Dragon Ball.
Mas é detalhista, fino, suave, dinâmico, claro. O nível de detalhes de cada quadro é excepcional, e mesmo assim se nota que o desenho é quase um esboço de tão simples, como se feito de uma só vez. O traço de Miyazaki, talvez como os ventos do país de Nausicaäa, é leve, levinho, suave.
Nausicaä, por isso, demanda a contemplação típica do mangá, do bom mangá, de que falei bem ali atrás. Exige que o leitor se detenha mais que uma fração de segundo a cada painel, em especial os mudos, com paisagens, absorvendo cada detalhe. Isso inconscientemente leva a uma imersão mais profunda na obra, aliás, no mundo proposto pelo autor, quase como aquele estado de êxtase profundo das artes marciais japonesas.
O texto de Miyazaki vai pelo mesmo caminho, bastante leve mas nem por isso raso. A história da Terra pós-apocalíptica de Miyazaki tem reinos, reis, princesas, países, mapas, exércitos, política, pessoas, traições e mortes. E ainda assim trata isto tudo como se fosse um conto, acessível a todos.
Realmente genial.
Minha experiência com Nausicaä, é claro, é pessoal. Talvez outra pessoa não tenha a obra em tão alta conta como eu. De todo modo, tenha em mente que se trata, sob qualquer ângulo, de uma pequena preciosidade num mundo em que o entretenimento e a cultura de massa de repente precisaram ser pesadas e impactantes para serem consideradas sérias, e coisas que são mais leves e suaves são necessariamente rasas e tolas. Nausicaä, com mais de trinta anos nas costas, mostra que não precisa ser assim.