Fivo 19/02/2010
A ARTE DE CRIAR UM UNIVERSO
TERÇA-FEIRA, 9 DE JANEIRO DE 2007
Invejo pessoas que conseguem, do nada, inventar estórias que prendem a atenção. Claro, não são inventadas exatamente do nada. Se não forem inspiradas por outras leituras, são minimamente inspiradas em suas histórias de vida, mas ainda assim acho admirável conseguir construir um ambiente auto-suficiente, com um mínimo de originalidade, seja nos elementos e seu encadeamento ou a simples forma de contar algo que até já existe. Invejo mais ainda aqueles que não se bastam em contar aquela estória, mas acabam criando uma mitologia própria, com suas leis, sua ordem, sua lógica particular; dão seu nome a um universo. Conhecia poucos que fizeram isto e conseguiram reconhecimento legítimo: Tolkien e George Lucas são expoentes mais óbvios, mas temos ainda, em escopo menor, Monteiro Lobato. Estes exemplos são diferentes do universo de Star Trek e Nárnia, por exemplo, já que o primeiro não foi idealizado por uma pessoa e o segundo é mera derivação do que já existia. Em paralelo, há diversas outras publicações que, se não conseguem criar uma mitologia propriamente dita, ao menos seguem um encadeamento temático que reforça um gênero, como as do Guia do Mochileiro das Galáxias, Fronteiras do Universo e outras.
Pois bem, na virada deste ano fui apresentado – mui tardiamente – a mais um destes caras admiráveis. Orson Scott Card. O nome, quando li, não me era estranho, mas não consegui lembrar de nenhuma referência boa ou ruim de seus livros. Quando me foi oferecido o primeiro, O Jogo do Exterminador (Ender’s Game, 1985, 380 páginas), olhei para a capa – um desenho infantilóide um tanto quanto inadequado ao conteúdo – e pensei “Poxa... já passei da idade de ler livros da coleção vagalume”. O título brasileiro igualmente infanto-juvenil e a sinopse também não ajudaram muito, mas aí a culpa era minha mesmo, já que, sei lá por quais motivos, achei que tinha um ar de Guia do Mochileiro das Galáxias e, perdoem-me os fãs, acho aquilo extremamente chato. Ninguém que eu conheço tinha qualquer referência do livro, mas sou adepto da idéia de que prefiro me arrepender por algo que tenha feito do que por deixar de ter feito. Grata surpresa! Mesmo que o tema não tenha um tiro certeiro nos meus gostos, é inegável que a leitura fácil e bem arrumada, aliada a uma trama que transborda em referências, metáforas e sub-conceitos, atrai a atenção e consegue dar aquela a vontade de chegar logo ao fim.
O livro é ambientado em um futuro indefinido, onde o mundo experimenta um período de paz interna forçada e controle de natalidade, enquanto vive sob o constante receio de ser invadido por uma raça alienígena. Duas tentativas de invasões ocorreram no passado e a iminência de uma terceira faz com que busquem pessoas capazes de fazer a diferença na condução da esquadra estelar terrestre. Com isto, passam a peneirar crianças superdotadas que apresentem as características que encaixem no perfil desejado, caso do protagonista Ender Wiggin, uma criança de 6 anos.
O livro já tem 25 anos e contando. A literatura, aliás... a cultura de ficção científica ao longo deste tempo esgotou uma série de possibilidades que, hoje, fica difícil dizer quem influenciou quem e, mais importante, quem teve a sacada original. Meses atrás, conversando com o Doggma, comentei ter visto na véspera Duro de Matar e achava, depois de tantos anos desde que vi pela primeira vez, que o filme era uma sucessão de clichês. Ele retrucou dizendo que, na verdade, não era uma sucessão de clichês, mas a criação deles. Na época, aquilo era original. Isto muda muito o impacto que a estória tem para quem lê/vê. Não digo que O Jogo do Exterminador é uma compilação de fórmulas, longe disto, mas algumas das soluções apresentadas ao longo do livro parecem fáceis, simples, sem muita elaboração, o que não quer dizer que sejam triviais. Apenas não surpreendem em alguns momentos. Mesmo assim, paradoxalmente, percebe-se que Card tenta fugir de algumas situações-padrão, o que pode ser resultado das revisões que o texto recebeu desde que era um conto publicado em uma revista, até se tornar um livro completo. Em dado momento, achava que Card se perdia ao dar um comportamento e texto adulto para uma criança de 6 anos - não entrarei no mérito de superdotados portarem-se ou não daquele jeito - , mas depois percebi que a opção não foi mero elemento de roteiro. Ao optar pelo uso de uma criança, o livro atinge em cheio o público infanto-juvenil e seus conflitos, mais especificamente os daqueles jovens que têm algum tipo de sentimento de solidão, segregação. Entretanto, o comportamento e linguagem mais madura sem ser rebuscada (com concessões pueris óbvias, como o nome dado aos alienígenas) deixa a porta aberta para o público mais maduro e de mente aberta. Neste ponto, Card consegue ser minucioso em alguns detalhes. O nome do personagem, Ender Wiggin, tem algumas interpretações livres. Ender é quase um anagrama perfeito de “Nerd” e Wiggin tem sonoridade semelhante a “Winning”. Mas Ender é ainda uma brincadeira com “End” e “er”, partícula que, em inglês, denota autor de uma ação. Assim, Ender seria um Terminator, um Nerd Exterminador até no nome. Que criança solitária não encontra conforto em se ver ali?
A minúcia de Card não pára aí. É conhecimento tácito que o grupo de elementos que fazem um veículo cultural invadir a seara da aceitação popular é bem definido, e certamente o mix de conspiração política, ação seqüencial, simbologia religiosa e experimentações com comportamento humano faz parte deste grupo. Conferiu a Ender significado bíblico, messiânico, o que é pule de dez no mercado editorial de seu país, ainda mais se considerar que Card é mórmon e missionário, já tendo morado no Brasil na década de 70. Coloca então a política de 1985 a seu favor, moldando o Pacto de Varsóvia a serviço do enredo sem que, hoje, pareça datado. Ao entrar pelos meandros da política e Estado Militar, traz no bojo a questão da brutalização da infância em exércitos. Mais atual que isto, impossível. Não deixa também de usar um sem número de elementos e significados que tornam óbvio o uso do livro em debates filosóficos. Não fosse por LOST, pouca gente comum dos dias de hoje saberia quem foram John Locke e Desmond David-Hume, mas os arquétipos de ambos são usados no livro, fazendo a união da política, do abuso infantil, e do Escolhido de forma natural e, certamente, com inteligência. Não fosse o simples desenrolar do enredo suficientemente interessante, o uso destes elementos tem mérito por despertar a curiosidade do leitor acerca de fatos e pessoas, o que é sempre algo valioso e caracteriza grandes escritores.
Isto tudo não é suficiente para que se possa dizer que ele construiu uma mitologia. Vale mencionar, o enredo pula etapas e passa superficialmente demais por outras onde um maior aprofundamento seria bem vindo. No começo achei que seriam falhas narrativas, depois percebi que eram deixas propositais para seqüências. E elas existem. Depois de Jogo do Exterminador, que ganhou os principais prêmios da literatura de ficção científica, Orson lançou O Orador dos Mortos, Xenocida e Os Filhos da Mente. Mais recentemente retomou a “franquia”com uma série paralela com Ender’s Shadow, Shadow of the Hegemon, Shadow Puppets e Shadow of Giant, todos com boa repercussão nos EUA. Esta produção forjou o termo Enderverso, onde toda uma dinâmica, física e ordem particular existem e são estressadas a ponto de ganharem solidez. E isto sim me dá motivos para dizer que ele criou uma mitologia. Agradeço ao Carlos por ter dado esta oportunidade de leitura.
Como não poderia deixar de ser, há previsão de O Jogo do Exterminador ganhar versão para o cinema em 2008 pelas mãos de Wolfgang Petersen. Este não é o primeiro contato de Card com o cinema. Ele novelizou o roteiro de Segredo do Abismo (era daí que eu conhecia o nome!).