Acervo do Leitor 01/02/2018
O Prisioneiro do Céu – Carlos Ruiz Zafón | Resenha | Acervo do Leitor
O que nos define? Possuímos realmente alguma identidade ou todos nós somos um processo evolutivo constante em ebulição? Nossa identidade pode nos escravizar, pois quando há necessidade de mudanças até mesmo para sobreviver, é preciso se adaptar. Para haver uma identificação constante seria necessário a ausência de transformações mas isso seria limitar-se frente às constantes dificuldades e influências da vida. Impossível afirmar se ser sólido como uma rocha é mais digno ou louvável que maleável como água. Essa pequena e triste obra é sobre a insustentável leveza do ser. Sobre dores, traições, desamores e as pequenas alegrias que necessitamos nos apegar para caminhar algumas milhas a mais. É uma aula de sobrevivência ministrada pelo inesquecível Fermín Torres.
“Tudo se perdoa nessa vida, menos dizer a verdade.”
Daniel Sempere e Fermín Torres são amigos. Uma mão estendida no passado que gerou uma abraço eterno no coração. Daniel dono de uma livraria é casado e tem um filho. Fermín trabalha para Daniel, é noivo e não tem filhos… nem passado. O sumiço de um misterioso escritor assim como suas obras, sofrimento e algumas mortes uniram os dois no passado. Mas é tempo de olhar para frente. As dificuldades econômicas transitórias passadas por Daniel não se comparam as dificuldades existenciais permanentes vividas por Fermín. As vésperas de um casamento e de assumir uma família ele antes precisa se “assumir”. O homem prestes a subir em um altar para amar vai precisar antes descer os degraus do seu passado e mergulhar na dor. Um passado obscuro em que ele foi vítima da perseguição política instituída pelo ditador Franco na Espanha após uma guerra civil que manchou para sempre o país de vermelho. Fermín foi humilhado, preso e torturado. Em meio a grilhões, espancamentos e queimaduras ele não perdeu apenas o seu nome, mas sim sua dignidade e identidade. Mas, mais forte que a dor e desolação, é a esperança. Nas masmorras torturantes de sua prisão ele fez de tudo para sobreviver, não se orgulha, mas gostaria de esquecer. Porem a visita de um misterioso personagem de seu passado trará tudo a tona.
“A cada quinze dias, realizava-se um julgamento militar sumaríssimo e os condenados eram fuzilados ao amanhecer. Quando o pelotão de fuzilamento não conseguia acertar nenhum órgão vital por causa do mau estado dos fuzis ou da munição, os lamentos de agonia dos fuzilados caídos no fosso eram ouvidos durante horas. Algumas vezes, ouvia-se uma explosão e os lamentos silenciavam bruscamente.”
Em um Natal que só trouxe frio e dívidas, quem trouxe esperança e calor não foi o velho Noel, mas sim um misterioso senhor que trouxe seu dinheiro em busca do livro mais caro da livraria de Daniel para presentear Fermín. Mas não era paz e uma boa história que ele pretendia trazer, e sim angústia e dor. Ele conhece o passado de Férmin, e voltou trazendo “demônios” para atormenta-lo e em busca de algo. Em tempos de guerra, alguns evitam julgamentos morais, mas algumas atitudes não estão isentas de consequências. O que ocorreu nas masmorras da prisão no castelo Montijuic deveria ser esquecido. Mas certas lembranças e dívidas estão marcadas na alma, e só a morte pode paga-las, mesmo morte em vida. Fermín se vê forçado a enfrentar ao lado de Daniel, em meio a lágrimas e ranger de dentes, tudo aquilo que ele tinha prometido para sempre esquecer.
“Tudo é falso neste mundo, meu jovem. Tudo menos o dinheiro.”
SENTENÇA
Mais uma magistral obra escrita pela lenda Zafón. Este é o terceiro, e penúltimo, livro da sua aclamada série “O Cemitério dos Livros Esquecidos”. Férmin Torres, principal coadjuvante da obra-prima “A Sombra do Vento”, é o protagonista deste livro. Rara as vezes na vida presenciei um personagem tão carismático e bem construindo contendo tantas camadas de profundidade em seu caráter. Apenas um gênio como Zafón para nos fazer rir, chorar e se alegrar de verdade com as andanças deste sofrido “anti-herói”. Esta pequena obra é mais uma prova perfeita que alguns livros, mesmo sendo brinquedos feitos com letras, alem de entreter têm a capacidade de alimentar a alma.
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