Cláudia 27/07/2012 Em Tempo é dinheiro acompanhamos o dia-a-dia de duas famílias, os Knacker e os Burdina. A família de Shep Knacker é a central, mas como a narração é em 3ª pessoa e tem capítulos inteiros sobre a família dos amigos de Shep Jackson e Carol trechos que são muito importantes para o desenvolvimento da narração, diria que o livro é sobre as duas famílias, alias sobre qualquer família.
Shep Knacker é um homem muito correto, trabalhou a vida inteira como faz-tudo na empresa que construiu do zero e sempre economizou para a Outra Vida. O sonho dele é se mudar permanentemente para algum lugar remoto de 3° mundo e viver com a família da poupança de 1 milhão de dólares. Quase todos os anos faz viagens de pesquisa com a família buscando o local ideal. Para colocar em prática o sonho, Shep vendeu a empresa para um dos seus funcionários em 1996, acreditava que 2 meses seriam suficientes para organizar a viagem, mas 2 meses viraram 8 anos e no início da narração em 2004-2005, ele trabalha como empregado na empresa que um dia foi sua, sempre avacalhado pelo chefe que, aliás, com a idéia de oferecer os serviços de faz-tudo pela Internet multiplicou o valor da empresa. Shep é casado com Glynis, quando se conheceram, ela era uma entusiasmada aspirante a artista, sempre criando lindas peças de metal, atualmente é dona de casa frustrada e trabalha fazendo moldes para doces em um comércio local. Eles têm dois filhos, Amélia que esta na universidade e Zach, um adolescente introspectivo, que quase não existe em casa. O dinheiro do seu mau negócio continua na conta, então Shep cansado de adiar o seu plano, compra as passagens para a pequena ilha Pemba, na África, e vai para casa informar à esposa que a Outra Vida começa agora, com ou sem ela. Acontece que no dia que dá a notícia, Glynis conta a ele que foi diagnosticada com um tipo raro de câncer e que precisa que ele continue em seu emprego por causa do plano de saúde.
Jackson e Carol Burdina são amigos íntimos dos Knacker, Jackson trabalha há anos na empresa com Shep, desde a época em que Shep ainda era o chefe. O casal tem duas filhas, Heather de 12 anos e Flicka de 16. A mais velha tem uma doença genética rara a Disautonomia Familiar a maioria dos casos acontecem em pacientes de etnia judaica. É uma desordem no sistema nervoso que desencadeia diversos sintomas. A narração mostra em detalhes como é o dia da garota, e tudo o que eles passam para mantê-la viva. Ela precisa de diversos cuidados, tem dificuldade para comer e respirar, os olhos não tem lágrimas naturais, ela não anda direito, etc. Tinha ouvido falar vagamente dessa doença, é devastadora. A personalidade da garota é muito legal, ela é sagaz e choca as pessoas o tempo todo.
Então agora Shep precisa deixar o seu sonho de lado para cuidar da esposa, e passa a entender melhor como é a vida do seu melhor amigo. A história é sobre os relacionamentos familiares e amorosos e as pessoas, como realmente são. E uma forte crítica ao sistema de saúde (nos EUA), mesmo os Knacker tendo um plano de saúde, o dinheiro vai sumindo da conta com as medicações e procedimentos sem preço da doença de Glynis que não são cobertos pelo plano.
Shep passou a vida inteira sendo um capacho, e tem orgulhoso disso, ele faz tudo o que pode pelos outros e sempre segue as regras, mesmo quando o seu pai não o respeita, sua irmã o explora e sua esposa o menospreza. Ele é aquele personagem que apesar de irritar com sua passividade, é impossível não gostar dele, ele é tão bom, até demais, irrita.
Glynis é uma pessoa difícil, ela é muito sincera, ou seja, ela é má. Estranho isso, mas é a realidade, uma pessoa que fala as coisas exatamente como elas são, fica parecendo maldosa. Acontece que ela não é ruim de verdade, eu acho, o leitor a conhece em uma situação extrema, ela esta com muita raiva de tudo do marido que ia para Pemba, dela mesma por não ter feito tanto quanto gostaria e de todos que conhecem por tratá-la como uma doente. E agora por justificar as atitudes dela com a sua doença, ela me odiaria também, então talvez ela seja assim mesmo e o câncer não tenha modificado seu jeito de ser. Uma das questões do livro é essa mesma, como nós tratamos as pessoas de forma diferente pelos motivos errados, e criamos caricaturas das pessoas que conhecemos ao modificar por conveniência as lembranças que temos delas.
Jackson rouba a cena, ele é um cara inteligente e revoltado. O cara tem uma teoria sobre tudo. Ele acha que todos os impostos e tudo de ruim que acontece é causado pelos Sugadores e ele e o resto dos trabalhadores Sugados - pagam para serem ferrados. Os seus discursos sobre salário, guerra, plano de saúde, multa de transito,... são longos, elaborados e entretenimento garantido. Além de renderem uma boa reflexão, apesar do fato dele ir contra quase tudo atrapalhar a sua credibilidade, ele tem razão sobre vários assuntos.
Carol, já ia esquecendo de comentar, ela não é uma personagem muito marcante. Ela é demais, faz tudo pela filha, trabalha e nunca reclama.
Essa não foi uma leitura fácil, a autora mostra o pior da vida de forma realista, sem preparar o terreno, as coisas são como elas são. Toda o sofrimento e dificuldade dos personagens são apresentados, avaliados em cifras, discutidos e desenvolvidos. Inclusive os pensamentos mais feios e mesquinhos, como o preço por mais um mês de vida? Ou como a filha quer a casa do pai idoso, mas não quer colocar a sua vida em pausa para alimentar, dar banho e ajudar o velhinho no banheiro. Os personagens e a interação entre eles foram muito bem feitos. Portanto uma leitura imperdível.
Essa autora me impressiona em cada obra, ela escreve muito bem sobre as pessoas. Depois de falar sobre mães e filhos [Precisamos falar sobre o Kevin], a competição no casamento [Dupla Falta], ela trouxe uma trama familiar complexa e surpreendente. Eu não sabia o que esperar do final, mesmo sabendo que dificilmente seria feliz esperava algum tipo de redenção [para o leitor ou os personagens ou ambos], e não me decepcionei.
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