Dani 13/06/2014Além da alegoria"Qualquer indivíduo é mais importante do que a Via Láctea."
- Nelson Rodrigues
Essa frase poderia servir perfeitamente de introdução para o primeiro volume da Trilogia Cósmica, o livro Além do Planeta Silencioso. Tendo sido escrito por C.S.Lewis em 1938, antes de publicar as famosas Crônicas de Nárnia, já nos é possível identificar o estilo fantasioso, metafórico e alegórico de Lewis, que viriam a ser fortes características de O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupas. Mas nessa obra de ficção especulativa o autor não se apegará a conceitos unicamente cristãos, e passeia por questões filosóficas, políticas, sociais, antropológicas e mitológicas.
O professor Ransom, sequestrado pelo professor Weston e seu parceiro Devine, desembarca no planeta desconhecido Malacandra, sem saber os reais motivos. Em uma nave esférica, o narrador nos mostra ideias fantasiosas e encantadoras a respeito do clima e da iluminação no espaço, desenvolvendo um conceito que foge do que entendemos por espaço e apresentando o conceito de céus, em um sentido espiritual procurando algumas justificações científicas.
Ao desembarcar em Malacandra, Ransom foge de uma possível ameaça, por ter ouvido uma conversa entre os sequestradores de que eles o ofereceriam em sacrifício. Ransom encontra e acaba convivendo com os hros, criaturas agrícolas, tribais e amantes da poesia e da música.
Ransom se vê em choque cultural e se questiona sobre seu papel de homem civilizado ante a uma tribo inferior. Por exemplo, em dado momento ele se pergunta se aquele povo possui alguma mitologia e se ele deve desempenhar o papel de educador religioso. Porém, se choca ao perceber que os hrosa são quem o ensinam sobre as crenças deles, tratando-o como um ignorante. O mesmo acontece quando, tentando nivelar-se por baixo, Ransom tenta explicar que veio do céu. Os hrosa explicam a ele que é impossível, e que ele deve ter vindo de alguma das esferas (planetas). O professor se dá conta de que é mais ignorante do que julgava serem as criaturas que o acolheram.
Em sua jornada, acaba aprendendo não só a língua do povo, como também o sistema de governo regido por criaturas fantásticas, que fazem alusão a uma mitologia cósmica, unindo conceitos judaico-cristãos e mitologia europeia.
Não é difícil simpatizar com as criaturas que habitam no estranho planeta Malacandra. Divididas em três espécies diferentes, os hnau (definição para todas as espécies dotadas de inteligência, raciocínio e consciência, das quais o ser humano também faz parte) desse planeta tem suas características complementares e vivem em perfeita harmonia, sabendo lidar com suas diferenças.
Uma das discussões centrais da obra é a importância do indivíduo, o que nos leva à frase inicial dessa resenha. Em contraste às tribos do planeta misterioso, sendo apresentadas como coletivos que funcionam em perfeita harmonia, somos levados a refletir sobre o valor de um indivíduo ante a uma ameaça à espécie. A discussão sobre este tema acaba se tornando o clímax da história, e é protagonizada por Weston, cientista orgulhoso de sua tese e sua retórica, e Oyarsa, uma figura invisível cuja função na história se assemelha ao famoso Aslan. Weston trata os Malacandrianos como os índios da história do descobrimento do Brasil: primeiro ameaça, demonstrando não ter medo, e depois oferece presentes bonitos.
É interessante como no diálogo entre Weston e Oyarsa o autor desmascara os recursos da retórica, através de Ransom que atua como interprete entre os dois personagens. Ao tentar traduzir toda a eloquência e sofística de Weston para a língua dos Malacandrianos, Ransom se vê no dever de dizer quais são as reais intenções por trás daquelas palavras: Weston deseja conquistar planeta após planeta, eliminando todas as espécies, para fazer sobreviver a raça humana, pois para ele o Homem é superior.
No entanto, mesmo Weston considerando o Homem superior, Oyarsa não compreende a contradição de Weston que desejava entregar Ramson, um homem, para ser sacrificado pelos Malacandrianos. Daí a percepção de Oyarsa de como a humanidade é torta (termo que os malacandrianos usam na falta de uma palavra que defina o mal).
Oyarsa explica como os planetas são regidos por uma inteligencia que habita nos céus, onde se situam todos os planetas. Através de Ransom e Weston, Oyarsa compreende como O Torto (que deveria ser na Terra aquilo que Oyarsa é em Malacandra, mas entortou-se) entortou toda a humanidade, levando os homens a se preocuparem com progresso e evolução em detrimento ao amor.
Embora seja uma obra extremamente detalhistas nas descrições de cenários, o autor tem uma preocupação grande em derrubar paradigmas do gênero de ficção científica da época. Fugindo dos clássicos monstrengos desumanos que buscam a destruição da humanidade, os seres que vivem além do planeta silencioso são não apenas inofensivos, como possíveis vítimas dos Hhomena, ou seja, dos homens. Nesse ponto, podemos nos lembrar da obra máxima de Orson Scott Card, Ender's Game.
Seria trágico oferecer nessa resenha mais de minhas interpretações quanto à filosofia desenvolvida na obra. Claramente alegórica, o autor diz muito com pouco. A condição humana como raça superior é posta em cheque e é impossível finalizar a leitura sem sentir um quê de vergonha e emoção ao mesmo tempo.
A poesia está presente na obra, em cada página, tanto quanto a fantasia, a especulação científica, a mitologia e a filosofia. Tudo isso está muito bem amarrado e conciso, cooperando um com o outro na estrutura narrativa, direcionando ao objetivo do autor em dar voz às suas ideias. No final, não se trata nem de fantasia, nem de sci-fi, nem mitologia ou mesmo filosofia. Se trata de alguns dos mais importantes e paradigmáticos conflitos da existência do homem moderno.
Fechando a obra em um capítulo extra, o narrador revela ser um conhecido de Ramson e conta como ambos decidiram contar as aventuras vividas pelo professor em Malacandra, e amarra alguns pontos interessantes.