Konshal 03/12/2020
Dois Tempos, Duas Vozes
O romance policial indiano Jogos Sagrados mostra um embate entre seus dois protagonistas em dois tempos.
No agora, vemos Sartaj Singh e seu cotidiano policial. Narrado em terceira pessoa, vemos o dia-a-dia da Índia em suas mais diferentes matizes. Ao exercer sua função, ele leva a história a vários ambientes: desde as favelas pobres até cidades de veraneio indianas.
No passado, e em primeira pessoa, é narrada a ascensão e queda de Ganesh Gaitonde, um dos mais famosos gângsters internacionais da Índia. A sua história começa com o contrabando de ouro de Dubai e vai, aos poucos, galgando espaços na sociedade indiana.
A progressão lenta e gradativa de sua Companhia-G vai aumentando a área e o poder da influência de Ganesh Gaitonde. Astuto e inteligente, podia, as vezes, até enganar com as suas atitudes e comportamentos, mas a violência extrema que sempre empregava demonstrava que ele era muito mais lobo do que cordeiro. Gaitonde era companheiro, gângster, galanteador, ambicioso, político, devoto, confidente, empreendedor, e até certo ponto, influenciável. Um homem de múltiplas facetas.
Mas, de todos os seus passos, o mais ousado deles foi se aliar ao governo indiano através da política "inimigo do meu inimigo". Uma aliança que impulsionou a internacionalização de suas atividades, agindo, muitas vezes anonimamente, em favor do serviço secreto da Índia.
Impaciente na recém iniciada vida espiritual ao estabelecer um vínculo com um guru; inseguro na sua vida amorosa em um relacionamento de fachada com uma promissora atriz indiana em ascensão. Pouco a pouco, as ações de Ganesh Gaitonde passam a ser mais impulsivas, passionais. Impulsividade que será o combustível de sua derrocada.
O ponto final da história de Ganesh Gaitonde é o parágrafo inicial da de Sartaj Singh. Vale destacar que ambas narrativas são apresentadas de forma alterada no livro. Vindo de um divórcio recente, Sartaj acaba se inserindo (contra a sua vontade) na investigação sobre o ocorrera com Ganesh, já que o paradeiro do gângster internacional era totalmente desconhecido para o governo, polícia e inteligência indianas.
Mas esse era um exercício extracurricular para o policial. O cotidiano de Sartaj envolvia outras situações mais banais e corriqueiras do que uma conspiração internacional. Dentro da corporação a corrupção era o principal expediente. Sartaj, desde sempre, fora o homem de confiança, o interlocutor de Parulkar (seu chefe e comandante da delegacia) no recolhimento de valores provenientes de suborno. Uma realidade que surgia bastante no dia-a-dia de Sartaj, mas que não era abraçado com tanto entusiasmo assim por ele.
Vários casos corriqueiros compõem a jornada de Sartaj: adolescentes problemáticos da periferia, caso de violência doméstica que evoluiu para traição/chantagem, entre outros. Interessante observar que, não importa a tensão que ele sofresse no trabalho, a mãe de Sartaj, Prabhjot 'Nikki' Kaur, sempre se revelava um porto seguro para o filho, seja em ligações madrugada a fora, seja presencialmente em visitas despretensiosas.
Quem sempre recorria a Sartaj sobre novos passos, novas pistas, novas instruções na investigação sobre Gaitonde era Anjali Mathur, agente do serviço secreto indiano, herdeira (indireta) de K. D. Yadav (ou Mr. Kumar), profissional responsável por recrutar Gaitonde. incansável, a agente vê como uma questão de honra a resolução desse mistério envolvendo o retorno do gângster à Índia. Um trabalho que se tornaria uma espécie de homenagem a Yadav, visto o delicado estado de saúde de seu padrinho. Cenário que gera uma das maiores expectativas na história, uma vez que é ele quem melhor conhecia o mafioso.
A leitura de Jogos Sagrados pode ser um tanto burocrática num primeiro momento. O autor utiliza muitas expressões indianas o tempo todo (não a toa, o livro conta com um glossário de 15 páginas), mas, a partir do momento que nós nos acostumamos a elas ou as deduzimos a partir do contexto da trama, a leitura adquire uma agradável fluidez. Nos chocamos com as perdas (repentinas) que ocorrem; nos identificamos com o cansaço recorrente que o Sartaj enfrenta e, podemos também, nos simpatizar com as astúcias de Gaitonde e seus vários questionamentos, embora os seus lampejos de ódio sejam e venham na mesma proporção que sua inteligência.