Lucas 20/05/2021
Marighella: símbolo de aversão ou martirização? Um livro que não responde a esta pergunta e, por isso mesmo, excelente
Por vinte e um anos na segunda metade do século XX, o Brasil foi privado do maior símbolo das democracias modernas: o direito por parte de sua população da escolha do seu governante máximo. Só este argumento deveria abalar seriamente as convicções de quem defende esse regime opressor. Mas a principal razão do fenômeno que explica os chamados "filhotes da ditadura", utilizando um termo espalhafatoso (e original) do gaúcho Leonel Brizola (1922-2004), foram os desafios que o regime encarou em seus primeiros anos para consolidar seu domínio: a ameaça do comunismo.
Antes destas discussões acerca dos "benefícios" (que existiram, diga-se, especialmente em termos estruturais da economia, sem aqui questionar o "preço" pago por isso) da Ditadura Militar (1964-1985) ganharem força no cenário social do Brasil, juntamente com as cisões políticas que radicalizaram os ânimos nos últimos oito anos, o jornalista Mário Magalhães lançou em 2012 a biografia de um dos maiores símbolos de oposição ao regime militar: o guerrilheiro baiano Carlos Marighella (1911-1969), definido pelo próprio governo do General Artur da Costa e Silva (1899-1969), em 1968, como o "inimigo público número um do governo".
Marighella é abordado de forma obscura na história brasileira daquele período, mas a obra de Mário Magalhães paga uma certa dívida da história com este "trepidante" personagem. Não que Marighella tenha sido um mártir da democracia, como muitos membros da esquerda radical de ultimamente tentam vender, merecedor, nesta tese, de tal débito. A raiz dessa dívida histórica deve-se ao estardalhaço posteriormente relegado a um segundo plano histórico, que o biografado criou nos quase três anos em que ajudou a fundar e dirigir a Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo armado de oposição ao regime ditatorial e que promoveu vários atos de terrorismo urbano (apesar de seus membros condenarem essa pecha de terrorismo, suas ações pautavam por práticas que vitimavam terceiros em prol da almejada liberdade).
Não apenas na Ditadura Militar iniciada em 1964 (e que foi decisiva para uma radical mudança de comportamento do biografado), mas Marighella também foi oposição ao que hoje pode ser definido como primeira ditadura do Brasil desde a Proclamação da República em 1889: o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945), que fechou o Congresso Nacional, aboliu os partidos políticos, suprimiu liberdades e torturou opositores. Ao abandonar a faculdade de engenharia civil em 1934, Marighella ingressou no PCB (Partido Comunista Brasileiro) e ao contrário de Luiz Carlos Prestes (1898-1990), lendário líder comunista, o biografado sofreu sérias torturas em 1936, ficando praticamente um ano preso (e compartilhando seu destino como comunista com personagens importantes da literatura, como seu conterrâneo Jorge Amado (1912-2001) e o alagoano Graciliano Ramos (1892-1953)).
Depois, com a abertura promovida pelo governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), Marighella elegeu-se deputado constituinte. Foi um breve período em que o PCB tornou-se legalizado, atraindo muitos filiados, mas que depois voltou à obscuridade. Foi assim, na ilegalidade, que o partido assistiu à volta de Getúlio Vargas ao poder, seu suicídio, as tentativas de golpes militares que dali se seguiram, até 1964, quando, enfim, os militares, apoiados por uma crescente onda de medo ocasionada pelo sindicalismo, reformas de base e outros discursos "esquerdistas" do então presidente João Goulart (1919-1976) derrubaram-no e, com o apoio do Congresso Nacional, tomou posse o general Humberto Castello Branco (1897-1967).
Tudo isso corresponde a uma síntese histórica de parte dos acontecimentos que Marighella presenciou ao longo das suas quase seis décadas de vida. Detalhar isso é algo que a biografia de Mário Magalhães faz com um primor poucas vezes visto numa biografia de algum político brasileiro. O que é necessário aqui, especialmente a quem já se debruçou pela leitura da obra, é discutir o papel que Marighella deixou à posterioridade, e que corresponde a já citada dívida histórica que o personagem possui na política nacional.
De uma forma geral, Carlos Marighella é um indivíduo único na história política do Brasil porque foi perseguido por duas ditaduras. Sua biografia num primeiro momento traz empatia até mesmo a quem não tem concordância com os ideais da esquerda: quando o lado intelectual de Marighella prevalece, vê-se um homem inteligentíssimo, criativo (a prova de física respondida em versos no ensino médio é uma prova disso), arrojado e corajoso. Seu papel como deputado na assembleia constituinte de 1946 ilustra isso, com uma participação importante nos bastidores, apesar do preconceito generalizado que havia contra o seu grupo político.
Mas o golpe (ou revolução, sem querer aqui polemizar por esse ou aquele rótulo) de 1964 não ruiu apenas a democracia, mas sim o ideal ponderado de Marighella e outros comunistas importantes, como Joaquim Câmara Ferreira (1913-1970), amigo de juventude do biografado. Com o apoio de massas de subúrbios (especialmente de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte), do aparelho revolucionário de Cuba e de estudantes, Marighella saiu do PCB e conduziu seu grupo aos extremos da luta pelo fim da ditadura: a formação da ALN, o maior grupo armado de oposição ao regime.
Com enormes dificuldades de comunicação, o grupo foi se proliferando por meio de ações isoladas de guerrilha, simbolizadas essencialmente por assaltos a bancos e carros-fortes, pequenos ataques a patrulhas (com o intuito de surrupiar armas dos "meganhas"), etc. Aqui, a linha entre guerrilha e terrorismo torna-se tênue. Ao dar liberdade de ação aos seus correligionários, Marighella acabou permitindo ou não era consultado acerca de ações mais ousadas, que além de não atingirem seus objetivos acabaram vitimando (não necessariamente de forma mortal) cidadãos inocentes. Seu discurso incentivava o armamento da oposição e sua organização em células de resistência como as únicas formas de derrotar o regime. Mas não se pode desconsiderar as incongruências de tais práticas: se a melhor arma para o combate ao inimigo baseia-se em violência, velada ou explícita, ela é a mesma utilizada pelas autoridades perseguidoras dos revolucionários. Há o que George Orwell (1903-1950), escritor britânico autor da obra 1984, chamava de "duplipensamento", que nada mais é do que uma hipocrisia que altera opiniões e práticas de acordo com o que se convém (incrível como esse conceito é atual...).
Do mesmo modo, nenhuma ação terrorista deve servir de justificativa para as práticas de tortura que membros da ALN (e de uma forma geral, diversos outros opositores) sofreram com o intuito principal de entregar seu líder. Estas seções de tortura são um elemento relevante no último quarto da obra, e trazem uma sensação de medo ao leitor com descrições (reais e baseadas em documentos oficiais) que mais parecem um roteiro de filme de terror. Era assustadora a habilidade, a covardia e a crueldade dos agentes do chamado DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) nos "interrogatórios". Provavelmente, ecoará no leitor de hoje a revolta pelo fato de alguns destes torturadores terem partido sem terem acertado suas contas com a justiça ou, pior, serem endeusados por determinadas vertentes políticas atuais.
Como a história daqueles tempos ensina, e até mesmo pelo fim dramático da vida desse "valente baiano", Marighella cometeu sérios erros de análise do contexto social e político da época, muito bem discutidos no livro. Seja divinizando regimes que o tempo tratou de rotular como facínoras (como a União Soviética de Joseph Stálin e Cuba dos irmãos Castro); ou por meio da intelectualidade, as boas ideias e os bons discursos que o então pecebista demonstrou até 1964 e que mostraram-se efemeridades. Sem ser arrogante, suas forças, por ele superestimadas, sucumbiram-se diante de todo um aparato estatal que se fortaleceu nos chamados "Anos de Chumbo", iniciados na época de sua execução (novembro de 1969) e que duraram até o fim do governo de Emílio Médici (1905-1985), em 1974.
A obra de Mário Magalhães não é enviesada e em função disso não tece um julgamento definitivo acerca do protagonista (diferentemente da adaptação cinematográfica lançada internacionalmente em 2019 e dirigida por Wagner Moura, cujas críticas sugerem uma "martirização" de Marighella, mas que não justificam o fato do filme ainda não ter sido lançado no Brasil, o que ocorrerá, a princípio, em novembro deste ano). Aliás, a narrativa de Magalhães é, em boa parte das páginas, um livro de história, tirando o foco do seu biografado e detalhando contendas políticas que agitaram o país entre a década de 30 e a década de 70. A sensação que a leitura (recomendável a todos, independente de partidarismos) deixa é a de que Carlos Marighella não foi um mártir ou um vilão incorrigível pelas vias tradicionais; foi um brasileiro que viveu nas sombras, que pode despertar aversão e paixão, mas nunca indiferença, que jamais cogitou desertar ou refugiar-se em outro país e com ótimas ideias que se turvaram em meio a métodos questionáveis, cujos fins não devem (ou deveriam) justificar os meios.