Luis 03/03/2013
Inventário da luta armada
Conheci o jornalista Mário Magalhães no mesmo dia em que conheci o também jornalista Lira Neto : Em maio de 2012, no lançamento do primeiro volume da trilogia de Lira sobre Getúlio Vargas, marcada por um debate entre o autor e a plateia, mediado por Magalhães. Naquela ocasião, fiquei sabendo da empreitada do autor carioca, a portentosa biografia de Carlos Marighella, o guerrilheiro mais famoso do pior período da Ditadura Militar, instalada em 1964.
Lançado poucos meses depois, “Marighella- O Guerrilheiro que incendiou o mundo”, traz pouco mais de 700 páginas narradas em ritmo de trillher, talvez, contrariando a aparente imagem que guardei do autor, um intelectual algo frio e distante, incapaz de expressar emoções pessoalmente ou por escrito. Ledo engano. O que não falta à “Marighella” é emoção.
A começar pelo capítulo inaugural, que já havia sido publicado pela revista Piauí, meses antes do lançamento da obra. Magalhães descreve, com tintas cinematográficas, a tocaia armada pela polícia em 1964 para pegar o revolucionário que havia marcado “um ponto” em uma matinê de um cinema tijucano. Com a sessão repleta de crianças, Marighella é cercado pelos policiais que interrompem a projeção e acendem a luz da sala aos gritos. O (futuro) guerrilheiro é baleado em meio ao pânico que toma os demais espectadores. Mesmo ferido, ele luta contra seus algozes e , só a muito custo, é dominado por pelo menos 4 policiais, até ser jogado no “tintureiro”, sob o testemunho de vários populares que se aglomeravam na calçada do cinema.
Não foi a primeira prisão de Mariguella.
Nascido em 1911, na Bahia, primeiro filho de um imigrante italiano e de uma mulata típica da boa terra, desde cedo mostrou a sua personalidade contestadora e incomum. Aos 18 anos, respondeu em versos à uma prova de física no Ginásio da Bahia, em episódio que viraria lenda :
Doutor a sério me permita,
Em versos rabiscar a prova escrita.
Espelho é a superfície que produz,
Quando polida, a reflexão da luz.
Há nos espelhos a considerar,
Dois casos quando a imagem se formar.
Caso primeiro : um ponto é que se tem;
Ao segundo objeto é que convêm.
Seja a figura abaixo que se vê,
O espelho seja a linha beta cê.
Em 1932, toma parte na grave de estudantes que exigiam o adiamento dos exames no ginásio. No confronto com a polícia, gritam slogans a favor da revolução paulista daquele ano. Foi preso pela primeira vez. Pouco tempo depois, já na faculdade, abraça o comunismo, causa que o mobilizaria pelo resto da vida.
Com o fracasso da Intentona de 1935 e a consequente onda de repressão ao PCB, entra para a clandestinidade se constituindo em um dos membros mais ativos do partido até ser preso novamente pelo Estado Novo, em 1939. Ficaria preso quase seis anos.
Em 45, com a volta , ainda que provisória, dos ventos democráticos, o PCB torna-se uma entidade legal, elegendo vários deputados para a constituinte de 46. Marighella entre eles. Seria a sua única experiência na política regular. O livro trata em detalhes desse período, fazendo inclusive uma avaliação crítica sobre as inter-relações entre os membros da esquerda, o que, num futuro próximo, seria causa de rupturas e dissidências sem fim.
Com a nova rasteira levada pelos comunistas, no fim dos anos 40, o revolucionário volta para a clandestinidade. Aproxima-se do movimento sindical e acompanha de perto a relação dúbia do partido com o governo legal de Vargas.
A terceira e mais importante parte do livro, trata do período pós 1964, quando as esquerdas se dividem ainda mais , marcando adesão ou não à luta armada. Mariguella assume a segunda opção de forma plena.
Magalhães conta em minúcias todo o processo de formação dos grupos armados que passariam a protagonizar a oposição à ditadura. Mariguella se dissocia do PCB, funda a ALN (Ação Libertadora Nacional) e passa a ser encarado como o inimigo público número 01. O autor desvenda os bastidores não só da ALN, mas também dos demais grupos (VPR, MR8, Colina), traçando um perfil humanizado dos principais personagens e não se furtando de, sempre apoiado por farta documentação, descrever a ação da repressão nos porões da tortura. Causa espécie os relatos que incluem variedade impressionante de agressões : choques elétricos nos órgãos genitais, pau de arara, agulhas sob as unhas, introdução de baratas no ânus, etc. Infelizmente, tudo verdade.
A trajetória de Marighella chega ao fim no famoso episódio da Alameda Santos, em São Paulo, em novembro de 1969. O Guerrilheiro é tocaiado pela equipe do delegado Fleury, o facínora que comandava a Operação Bandeirantes, iniciativa financiada por empresários simpáticos ao regime e que tinha por objeto a eliminação pura e simples dos grupos da luta armada. Marighella foi o seu maior troféu.
Passados tantos anos de seu desaparecimento e já há quase três décadas desde o retorno ao regime democrático, a obra de Mário Magalhães cumpre a importante função de resgatar parte fundamental de nossa história.
Olhando para trás, há, pelo menos, o consolo de saber que o sangue de Marighella e de seus companheiros não foi derramado em vão.