Alê | @alexandrejjr 20/10/2021
Os olhos não mentem
Eu gosto de pensar que a alegria de um poeta como Mario Quintana acontecia quando ele imaginava o exato momento em que os olhos - e não a boca - de seus leitores davam um sorriso. Porque deve ser nesse ínfimo instante de tempo que a poesia faz duas almas tão distantes se conectarem. Afinal, diz a sabedoria popular que os olhos não mentem.
Este livro é uma reunião dos primeiros trabalhos de Mario Quintana. Na primeira parte, “Canções”, segundo livro de poemas do autor escrito em 1946, os leitores já se deparam com os quintanares tão particulares do bom velhinho que hoje vive suspenso na memória. Aproveito para destacar alguns versos de poemas como “Canção de junto do berço” (Não te movas, dorme, dorme/O teu soninho tranquilo./Não te movas (diz-lhe a Noite)/Que inda está cantando um grilo…), “Canção do dia de sempre” (Nada jamais continua,/Tudo vai recomeçar!/E sem nenhuma lembrança/Das outras vezes perdidas,/Atiro a rosa do sonho/Nas tuas mãos distraídas…) e “Canção para uma valsa lenta” (Minha vida não foi um romance…/Nunca tive até hoje um segredo./Se me amas, não digas, que morro/De surpresa… de encanto… de medo…) que acalentam e abraçam os leitores. Aqui, a simplicidade de cada verso é espantosa, assim como sua profundidade.
Na segunda parte, podemos conhecer a outra famosa faceta do poeta alegretense, que via nas coisas mais banais o extraordinário. Em “Sapato florido”, de 1948, temos minicontos, aforismos e poeminhas. Aliás, esse é o meu segmento preferido desta edição da Companhia das Letras. É nele que encontramos joias raras como “Epígrafe” (As únicas coisas eternas são as nuvens…), “Da paginação”, “Horror”, “Arte de fumar” e “Os máscaras” - esses vão ficar sem reprodução aqui porque possuem mais de duas linhas, infelizmente, mas valem a procura no Google -, “Crise” (Por causa dos ilusionistas é que hoje em dia muita gente acredita que poesia é truque…), “Carreto” (Amar é mudar a alma de casa.), “Envelhecer” (Antes, todos os caminhos iam./Agora todos os caminhos vêm./A casa é acolhedora, os livros poucos./E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.), “Da humilde verdade” (O quotidiano é o incógnito do mistério.), “Mentira?” (A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer.) e por aí vai. É muita genialidade para pouca resenha, sejamos sinceros.
Em uma distribuição sem explicação, o último segmento traz o primeiro livro publicado por Mario Quintana. “A rua dos cataventos”, de 1940, é composto exclusivamente de sonetos. E que sonetos! Considero a última parte desta edição uma das opções mais incríveis e acessíveis para apresentar aos não iniciados em matéria de poesia a beleza e a musicalidade do “poeta das coisas simples”. Ah, é também um bom momento para pessoas que como eu são, em raras ocasiões, atores frustrados ou exímios recitadores de boteco aquecerem o gogó e lerem os sonetos em voz alta.
Na base de uma união equilibrada entre reflexão, poesia e lirismo que sempre surpreendem, “Canções seguido de Sapato florido e A rua dos cataventos” é poesia em seu mais alto nível em língua portuguesa. É também uma viagem para recuperar o que temos de melhor em cada um de nós. Uma leitura não basta. Muito menos uma releitura. É preciso espalhar essa preciosidade em forma de livro e eu espero que já tenha feito a minha singela contribuição.