JeffersonCevada 29/07/2016Desonra: sob os efeitos das cores escolhidas por CoetzeeUm livro cujas construções de frases podem induzir, facilmente, à ideia de uma escrita simples, mas não dura muito e, rapidamente, é possível perceber sua densidade: cada página é uma explosão de fatos que dão materialidade às relações de ideias num composto emaranhado. Fatos que, à primeira vista, seriam dados como consequência direta daquilo que veio anteriormente. Nesse caso a arte de narrar não deixa entrever nada por antecipação tão pouco estabelece as coordenadas do ponto que indica a solução para cada um dos nós com os quais o leitor é levado a participar. Uma construção que, desde o micro até o zoom mais amplo faz parecer que cada "pincelada", representada a cada parágrafo, contenha ao mesmo tempo, matéria, objeto, relação, memória, sensação, caráter e estilo. A linguagem simples e a linearidade cronológica contrastam com a estrutura complexa de inter-relações e com as temáticas sociais polêmicas (racismo, sexismo, envelhecimento etc.) Em torno de um tema abrange um campo semântico em que orbitam significados, a um só tempo, estreitos, opostos, reflexos ou complementares. Um exemplo disso, dos mais marcantes, ocorre com os termos desgraça, desonra, humilhação, repulsa, vergonha e os opostos a eles - opostos em relação a quê? A certa altura já não temos mais a certeza do referencial. A narrativa lembra as concepções de Cézanne que dizia "mais a cor se harmoniza, mais o desenho se precisa... realizada a cor em sua riqueza atinge a forma em sua plenitude". Em Desonra não existe a linha divisória entre a forma aparente dos fatos e os fatos em si. A relação dúbia, dada pela tonalidade e efeitos de luz e sombra, tinge personagens e fatos sob a mesma paleta de cores, genialmente escolhida por Coetzee. Disso não se pode discernir o personagem malvado do bondoso, o frágil do potente, o conquistado do subjugado... quando todos estão sob as tonalidades do desconforto, da desonra.
O protagonista, um professor universitário de 52 anos, teria abusado de ou foi abusado por uma aluna de 20 anos? O que faz uma verdade: o fato em si ou uma construção retórica sobre um fato? Esse é apenas o início desse romance que foi lançado em 1999 e, desde então, vem se mostrando como um livro digno de fechar o século passado como prova do que melhor a literatura universal poderia ter produzido.
atualizado em 7.8.2016