Alê | @alexandrejjr 05/09/2020
A dama e o dom
Eu acredito fortemente que a literatura brasileira é, se não a melhor, uma das melhores do mundo. Na minha curta vida como leitor percebi que tinha uma grande lacuna que precisava ser corrigida: ler grandes escritoras do Brasil. Para começar a diminuir essa dívida pessoal, optei por alguém que resolveria outra falha minha, a de ser um leitor quase que exclusivamente de romances. Depois de ler a última página de "Um coração ardente" tive certeza de que a Lygia foi uma escolha precisa e abaixo explico o porquê.
Antes de mais nada é preciso deixar claro que este livreto com pouco mais de 100 páginas é uma reunião de contos escolhidos pela Companhia das Letras dentro da conhecida produção da escritora, portanto é um acontecimento recente e que não foi exatamente pensado dessa maneira por ela. Feito o esclarecimento, sigamos.
Para iniciantes no universo da Lygia Fagundes Telles, como foi o meu caso, este livro é brilhante, pois tem tudo o que eu já procurei a respeito dela: o famoso uso do fluxo de consciência, seu estilo próprio de narrar, avesso a certas convenções, e uma imaginação ímpar para criar ficções.
Os dez contos de "Um coração ardente" abordam muitas questões. Começamos com o erudito acessível de título homônimo ao do livro, que é poético, porém não memorável. Na sequência nos deparamos com a lupa social da autora em uma história incrível contada através do olhar de crianças no conto "Dezembro no bairro". Em "O dedo", a imaginação caminha solta pela praia assim como sua personagem principal de maneira estonteante, com utilização magistral do fluxo de consciência e uso incomum de vírgulas, dando um tom surreal à narrativa. Aliás, o surrealismo é uma das características incríveis do livro e reaparece em maior ou menor grau nos inspirados "As cartas", "O noivo", "A estrela branca" e "O encontro", quatro ficções memoráveis que se aliam ao absurdo extrapolado da realidade. O olhar ácido da escritora sobre o cotidiano e a simplicidade humana aparecem com deleite único nos contos "Emanuel" e "As cerejas", textos de narrativa ágil. Por último, destaco o final acachapante de "Biruta" que, aviso aqui com antecedência, poderá arrancar lágrimas de quem for mais sensível e tem - ou teve - animais de estimação.
Livro de curta extensão e gigante em produzir efeitos, "Um coração ardente" foi meu primeiro contato com a escritora e, graças a ele, dificilmente não lerei toda a obra de Lygia Fagundes Telles que, arrisco dizer, não é apenas dama da nossa literatura, mas também uma dama da imaginação.