ana liz 12/03/2024
Há coisas que fazem o homem, outras fazem o humano.
? O mundo não é o que existe, mas o que acontece.
Jonas ria-se: ele não abusava; os outros é que não detinham poderes nenhuns.
? O que não pode florir no momento certo acaba explodindo depois.
Morreram milhares de moçambicanos, nunca vos vimos cá. Agora, desaparecem cinco estrangeiros e já é o fim do mundo?
? Vantagem de um estranho é que confiamos essa mentira de termos uma só alma.
Deus me deu tarefa de morrer. Nunca cumpri. Agora, porém, já aprendi a obediência. Palavras de Dona Hortênsia.
Conselhos de minha mãe foram apenas silêncios. Suas falas tinham o sotaque de nuvem.
A vida, meu filho, é uma desilusionista.
Em fins de tarde, os flamingos cruzavam o céu. Minha mãe ficava calada, contemplando o voo.
Não vê os rios que nunca enchem o mar? A vida de cada um também é assim: está sempre toda por viver.
Como não tinha quem lhe tivesse amado ela deixara os objetos se apaixonarem por ela. Esses pertences se suicidariam sem a sua companhia.
Tínhamos orientações superiores: não podíamos mostrar a Nação a mendigar, o País com as costelas todas de fora. Na véspera de cada visita, nós todos, administradores, recebíamos a urgência: era preciso esconder os habitantes, varrer toda aquela pobreza.
Uma puta nunca é ?ex?. Há ex-enfermeira, há ex-ministro... só não existe ex-prostituta. A putice é condenação eterna, uma mancha que não se lava nunca mais.
E disse que, afinal, o padre Muhando tinha razão: o inferno já não aguenta tantos demónios. Estamos a receber os excedentes aqui na Terra.
Não será que deveríamos cuidar melhor da vida das massas? Porque a verdade é que o caracol nunca deita fora a sua concha. O povo é a concha que nos abriga. Mas pode, repentemente, tornar-se no fogo que nos vai queimar. Até me dá arrepio pensar nisso, eu que já senti as mãos queimarem-se. Esta luta, Excelência, é da vida e da morte e vice-versamente.
O cão lambe as feridas? Ou é já a morte, por via da chaga, que beija o cachorro na boca?
Ninguém era prisioneiro senão de seu próprio destino.
Culpa do vigente regime de existirmos. Aqueles que nos comandavam, em Tizangara, engordavam a espelhos vistos, roubavam terras aos camponeses, se embebedavam sem respeito. A inveja era seu maior mandamento. Mas a terra é um ser: carece de família, desse tear de entrexistências a que chamamos ternura. Os novos-ricos se passeavam em território de rapina, não tinham pátria. Sem amor pelos vivos, sem respeito pelos mortos. Eu sentia saudade dos outros que eles já tinham sido.
Porque, afinal, eram ricos sem riqueza nenhuma. Se iludiam tendo uns carros, uns brilhos de gasto fácil. Falavam mal dos estrangeiros, durante o dia. De noite, se ajoelhavam a seus pés, trocando favores por migalhas. Queriam mandar, sem governar. Queriam enriquecer, sem trabalhar.
? A guerra nunca partiu, filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio da gente miúda.
O que faz a lágrima? A lágrima nos universa, nela regressamos ao primeiro início. Aquela gotinha é, em nós, o umbigo do mundo. A lágrima plagia o oceano. Pensava ela por outras, quase nenhumas, palavras. E suspirou:?Haja Deus!
? As ruínas de uma nação começam no lar do pequeno cidadão.
Por que o nosso país carecia de inspetores de fora? O que tanto nos desacreditara aos olhos do Mundo?
Se de alguma coisa temos que tratar bem é do esqueleto, nossa tímida e oculta eternidade.
Viver é fácil: até os mortos conseguem. Mas a vida é um peso que precisa ser carregado por todos os viventes. A vida, caro senhor, a vida é um beijo doce em boca amarga. Se acautele com eles, meu amigo. Uns não vivem por temer morrer; eu não morro por temer viver. Entende, o senhor? O tempo aqui é de sobrevivências. Não é lá como na sua terra.
Somos madeira que apanhou chuva. Agora não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda não há. Esse sol só pode nascer dentro de nós. Está-me seguindo, completo?
? Há coisas que fazem o homem, outras fazem o humano.
o tempo é o eterno construtor de antigamentes.
Logo ele, amargo, culpando o mundo:?E a terra, a nossa terra, alguém já perguntou se ela se está sentindo bem?
Eu estava como o prisioneiro que encontra no carcereiro o único ser com quem trocar as humanidades. E pergunto: por que nos ensinaram essa merda de sermos humanos? Seria melhor sermos bichos, tudo instinto. Podermos violar, morder, matar. Sem culpa, sem juízo, sem perdão. A desgraça é esta: só uns poucos aprenderam a lição da humanidade.
Estes poderosos de Tizangara têm medo de suas próprias pequenidades. Estão cercados, em seu desejo de serem ricos. Porque o povo não lhes perdoa o facto de eles não repartirem riquezas. A moral aqui é assim: enriquece, sim, mas nunca sozinho. São perseguidos pelos pobres de dentro, desrespeitados pelos ricos de fora. Tenho pena deles, coitados, sempre moleques.
Os homens são assim, fingidos de força, porque têm medo. Ela me tocou, leve, e disse:?Você é forte, não precisa provar nada para ninguém.
Ia apoiar Ana Deusqueira, juntar-se às outras mulheres. Elas, em si, compunham uma outra raça.
os nossos antepassados nos olham como filhos estranhos. E quando nos olham já não nos reconhecem.
Do que me lembro jamais eu falo. Só me dá saudade o que nunca recordo. Do que vale ter memória se o que mais vivi é o que nunca se passou?
Faltava gente que amasse a terra. Faltavam homens que pusessem respeito nos outros homens.
os nossos antepassados nos olham como filhos estranhos. E quando nos olham já não nos reconhecem.
Face à neblina, nessa espera, me perguntei se a viagem em que tinha embarcado meu pai não teria sido o último voo do flamingo. Ainda assim, me deixei quieto, sentado. Na espera de um outro tempo. Até que escutei a canção de minha mãe, essa que ela entoava para que os flamingos empurrassem o sol do outro lado do mundo.
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Na tradição daquele lugar, os flamingos são os eternos anunciadores de esperança.
último voo do flamingo fala de uma perversa fabricação de ausência?a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto de esperança praticado pela ganância dos poderosos. O avanço desses comedores de nações obriga-nos a nós, escritores, a um crescente empenho moral. Contra a indecência dos que enriquecem à custa de tudo e de todos, contra os que têm as mãos manchadas de sangue, contra a mentira, o crime e o medo, contra tudo isso se deve erguer a palavra dos escritores.