Flávia Menezes 28/07/2023
CLUBE DOS MARGINALIZADOS: O LOUCO,O NEGRO,O VELHO E A MULHER
?Ratos e Homens?, publicado originalmente em 1937, é considerado uma das obras mais belas escritas pelo estadunidense John Ernest Steinbeck Jr., e um dos maiores romancistas do século XX, que também foi o ganhador do Nobel de Literatura de 1962. ?A Leste do Éden? e ?As Vinhas da Ira? são outras de suas obras consideradas como principais.
Influenciado pelos pais, desde muito cedo Steinbeck mergulhou em leituras de grandes autores, tais como Dostoiévski, Milton, Flaubert e George Eliot, e o resultado é essa escrita emocionante que ele desenvolveu, que nos desperta as mais profundas reflexões sobre a humanidade e todas as nossas dores e angústias.
Em si, o título por si só já é uma verdadeira alegoria, que nos fala dessa relação entre os ratos, figuras que já nos despertam tudo o que há de mais aversivo, desprezível e ameaçador, e do outro lado, o homem, seres maiores, mais fortes e mais racionais. Porém, nessa história, Steinbeck expõe as fragilidades, limitações e ignorâncias de uma raça que se considera tão superior, mas que por si só é capaz de se achar melhor do que os outros, e submetê-los a uma vida de escravidão e infelicidade.
Nesse cenário das dificuldades e imensa pobreza da época da Depressão norte-americana da década de 1930, Steinbeck traz na figura de dois simples andarilhos que saem em busca de um trabalho que os dê possibilidade de viver o seu grande Sonho Americano, George e Lennie já nos arrebatam logo nas primeiras páginas com a força dessa narrativa de trazer na figura típica do universo Steinbeckiano, o homem comum, bondoso que está sempre disposto a buscar o melhor para os seus semelhantes, lutando com todas as suas forças contra as injustiças sociais tão descaradas na época em questão.
Ouvir George e Lennie falando sobre o seu sonho, só nos faz pensar em como precisamos de tão pouco para sermos felizes. Ser livre, com seu direito garantido de ir e vir, podendo aproveitar o seu dia trabalhando nas coisas mais simples, e colhendo aquilo que necessitamos para viver (nem mais e nem menos) é tudo o que precisamos para sermos verdadeiramente felizes. Porém, ele também nos lembra de que de nada adianta alcançarmos algo tão bom, se não temos com quem compartilhar. E sobre a solidão tão típica da época de homens em busca de trabalhos e de promessas de uma vida melhor e mais digna, é que vem uma das passagens que mais me emocionaram:
"? Imagina se ocê num tivesse ninguém. Imagina se ocê num pudesse entrá na casa dos pião pra jogá baralho porque ocê era preto. Ocê ia gosta? Imagina se ocê tivesse que ficá aqui sozinho, só lendo. Claro qu´ocê ia podê jogá ferradura até anoitece, mas daí ocê ia tê que ficá lendo livro. E num tem nada de bom nos livro. A gente precisa de alguém... pra ouvi a gente. ? Choramingou: ? Qualqué pessoa fica loca se num tive ninguém. Num faiz diferença quem tá co´a gente, só precisa tá junto. Vô dizê uma coisa ? vociferou. ? Vô dizê pr´ocê que a gente se sente tão sozinho que até fica doente?.
Não é mesmo de emocionar até o coração mais gelado? Bom... Eu espero que sim!
Na marginalidade de uma sociedade norte-americana onde os ricos ficavam cada vez mais ricos, e os pobres a cada dia mais dependentes de um trabalho injusto e tão mal remunerado, essa história nos revela aqueles que eram tidos como inferiores através de quatro personagens: Lennie (aquele que sofre de problemas mentais), Crooks (o negro), Candy (o velho com deficiência física decorrente de acidente no próprio local de trabalho), e a esposa do Curley (que nem sequer chegamos a saber qual o seu nome próprio).
A cena em que os quatro se reúnem, e podemos sentir em suas palavras como é ser tratado como inferior, desprezado e negligenciado é uma das mais importantes desse livro. É como um verdadeiro "Clube dos Marginalizados", e muito embora a mulher receba um tratamento diferenciado por ser a esposa do filho do fazendeiro, quando ela fala sobre a sua vida e suas dores, não há como não nos provocar uma empatia imediata.
Entre "Ratos e Homens", esses quatro são os considerados os ?ratos? (aqueles que por algum motivo provocam aversão), porém, aqueles que são respeitados como ?Homens? (aqueles tidos como racionais), muito embora pareçam receber um tratamento diferenciado, ganhando até mesmo o direito de ser ouvido, também são aqueles que carregarão o peso das responsabilidades dos atos daqueles que são tidos como inferiores.
São tantas as cenas que mostram exatamente essa questão, mas para não dar spoilers, eu vou apenas deixar aqui esse fato de que por mais que os outros que não fazem parte do ?Clube dos Marginalizados? possam parecer ser tratados como superiores e receber um tratamento mais digno, o fato é que são eles que farão as escolhas mais duras. E o peso que carregarão por elas, esse não há nem como mensurar!
Uma temática que é importante ser discutida, e Steinbeck não falhou nenhum pouco na forma como ele retrata, é a questão de tudo o que envolve os transtornos psicológicos.
É muito comum vermos personagens com distúrbios mentais sendo retratados em sua essência, tal como acontece aqui com o Lennie, onde vemos uma criança em um corpo de um adulto. A empatia imediata que esses personagens despertam, é importante e até mesmo bastante tocante. Porém, precisamos compreender que pessoas com déficit cognitivo que não conseguem ser responsáveis pelos seus atos, precisam ser devidamente acompanhadas, pois por mais que se pareçam com crianças indefesas, a questão é que, diante da mínima frustração, seus comportamentos podem ter resultados fatais.
A empatia com aqueles que sofrem de algum distúrbio psicológico é essencial, porque são pessoas como nós, porém que apresentam limitações muitas vezes severas. Só que, essa empatia toda que um personagem como o Lennie nos faz sentir, não pode nos cegar a ponto de ignorarmos que suas limitações possuem resultados algumas vezes irrecuperáveis. O fato de que eles não possuem consciência do que fazem, não excetua a gravidade e seriedade de seus atos.
Os distúrbios mentais são um problema sério! E não podem ser ignorados. Afinal, os Lennies da vida real existem, e para viverem uma vida de qualidade, precisam ter o acompanhamento necessário de profissionais que lhes ofereçam o tratamento mais adequado (psicológico e medicamentoso), para que possam desfrutar de todas as suas potencialidades. E para que possam aproveitar essa vida no máximo que ela tem a lhes oferecer, cabe também aos seus pais ou cuidadores que compreendam a sua situação, e lhes ajudem em todas as suas necessidades e dificuldades.
Esse é um livro tão curto, porém com nível de profundidade que encontramos nos maiores calhamaços já escritos até hoje! Mas essa é a beleza da escrita de Steinbeck: onde no comum, no simples e no mais corriqueiro, ele deposita um universo inteiro de significados de uma existência humana tão complexa, mas ao mesmo tempo, tão bela.