adri cauduro 18/09/2011
Um ladrão de vida
Terminei de reler o Trem Noturno para Lisboa, e confirmei minha idéia de que era um dos melhores livros deste meu último ano de leituras.
Mas agora sei de uma forma mais clara o que me impressionou. Nesta releitura fui seletiva, e dei enfase aos textos do Dr. Prado, em detrimento da história do Prof. Mundus. E acho que aí residem as opiniões contrárias que ouvi de alguns leitores deste livro. A profunda diferença que o autor mostra entre estes dois personagens.
Fazendo uma comparação, o universo do médico, sua infância, a doença do pai, a escola, colegas, o amor por Maria João, os professores, a rebeldia, sua família, sua mulher, os amigos, sua profissão, sua paixão pela literatura, seu engajamento, a paixão e o sacrifício da mulher amada, a doença, enfim tudo neste personagem foi vivido de uma forma intensa, de entrega ao limite do humano, a relação com os pacientes, a política, tudo nele era admirável, um ser que desenvolveu todas as potencialidades com coragem e entrega profunda, por isso é o herói do livro.
No entanto levei algum tempo para realizar que o prof. sempre tão sedento de conhecimento, era na verdade um sanguessuga, um covarde que, mesmo ao buscar conhecer em profundidade o autor dos escritos que lhe despertaram tamanha emoção, não se deixou contagiar. manteve ao longo de toda experiência que a pesquisa lhe proporcionou, uma posição de observador, quase um ladrão que se apropria da história, sem nada dar em troca.
É difícil aceitar que depois de quase quinhentas páginas o personagem consiga passar por tantas personalidades tão marcantes, saber de decisões tão sacrificadas, e possa passar incolume por tudo isso. A frustração como leitora vem de reconhecer neste personagem algumas pessoas com as quais convivemos, que sugam a informação, desfrutam das experiências dos que com elas convivem e ainda assim, não se alteram. Ao contrário, como o prof em questão, passam pela vida a acumular informação, contabilizam tudo mas não se alteram, não demostram interesse outro que não seja o colecionar de vidas.
O livro apresenta as varias facetas de um mundo de possibilidades, e dois personagens. Um rico, que dá e recebe, sofre, se alegra, vive e morre. Outro miserável, que acumula, assiste, indaga, se apropria, rouba sons, imagens, palavras e lágrimas, sem nada dar, sem definir, sem delimitar. Passamos milhares de palavras esperando pela mudança, pela troca, pelo crescimento.. pelo abrir ou fechar de portas e nada acontece.
Ao final fica a certeza de que se pode tirar o homem da miséria, mas não se tira a miséria do homem.
No livro, como na vida.
Adriana Cauduro