O apocalipse dos trabalhadores

O apocalipse dos trabalhadores Valter Hugo Mãe




Resenhas - O Apocalipse dos Trabalhadores


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Paula 26/03/2013

Depois de muitas leituras desse livro, eis finalmente uma resenha. Ou uma tentativa de registrar por escrito um pouco dos pensamentos que tive durante a leitura desse livro. Valter Hugo Mãe é um dos meus escritores preferidos, disso acho que todo mundo já sabe, e a dificuldade que eu sinto de falar sobre um livro é diretamente proporcional ao amor que tenho por ele. Por isso só depois de ter lido esse livro três vezes é que essa resenha aparece finalmente por aqui.

O enredo narra a história de duas empregadas domésticas em Portugal, Maria da Graça e Quitéria. Duas mulheres trabalhadoras unidas pela cumplicidade da amizade e de sua ocupação. Maria da Graça, casada com Augusto, um pescador, é quem sustenta a casa com seu trabalho como “mulher-a-dias”, como eles falam em Portugal. Augusto passa a maior parte do ano no mar, e mesmo quando retorna não contribui muito com as despesas da casa. Maria da Graça trabalha na casa do senhor Ferreira, um homem rico e aposentado, que abusa sexualmente de Maria da Graça em sua condição de empregada doméstica, se apropriando do seu corpo como parte do serviço pelo qual paga. O sofrimento de Maria da Graça pode ser percebido pelos pesadelos que ela descreve ao longo da narrativa, da tristeza crescente que passa a demonstrar, mesmo depois da morte do senhor Ferreira e consequente fim dos abusos. Uma amostra de que o sofrimento causado pela violência desses assédios pode durar muito mais tempo do que se imagina.

O peso das expectativas geralmente atribuídas às mulheres, como esse ideal de amor romântico que é reproduzido desde a infância com os contos de fadas em que todos são “felizes para sempre”, faz com que Maria da Graça comece a achar que está apaixonada pelo patrão, e é esse o ponto que me preocupa no livro, essa imagem de uma mulher que é abusada sexualmente em seu ambiente de trabalho e que assume um discurso totalmente "masculino" que interpreta uma violência como amor. Felizmente na história, a amiga, Quitéria, aparece como uma espécie de alter ego e diz a Maria da Graça o que nós temos vontade de dizer: Maria da Graça, "és muito nova para te deixares convencer que o amor é sermos violadas” (p.20).

No romance, temos também a história de Andriy, um jovem que deixa seus pais na Ucrânia em crise, e migra para Portugal em busca de trabalho, como muitos fizeram na época da grande fome ucraniana. Andriy passa a se relacionar com Quitéria, ao mesmo tempo em que sente grande solidão por estar longe da família, com a qual se preocupa, e um tanto isolado, pois não fala português e em Portugal, concentrando-se unicamente no trabalho, passa a constatar quão violenta é a condição desumanizadora do trabalho, que desconsidera os sentimentos dos homens e passa a tratá-los como máquinas.

O apocalipse dos trabalhadores é um romance que fala sobre a condição dos trabalhadores e trabalhadoras no mundo contemporâneo; é um romance que fala sobre a bonita relação de amizade que surge nas circunstâncias mais inesperadas e também da violência a que as mulheres estão constantemente submetidas, seja no ambiente doméstico, seja em seu local de trabalho. Acho que ele fala também sobre o problema dessa concepção idealizada do amor, o que somos levados a acreditar que é amor, e que na verdade é o que pode nos destruir, como acontece com a Maria da Graça. Levada a acreditar que a felicidade é “morrer de amor”, passa a considerar uma violência como amor, e põe fim à sua vida para alcançar esse ideal. Mas isso não é amor.

MÃE, Valter Hugo. O apocalipse dos trabalhadores. São Paulo: Cosac Naify, 2013.


site: http://pipanaosabevoar.blogspot.com.br/2014/12/o-apocalipse-dos-trabalhadores.html
DIRCE 04/04/2013minha estante
Mais um para minha lista.
bjs


Leandro 12/04/2013minha estante
Oi Paula. Gostei de sua resenha. Aliás, estou lendo "A solidão dos números primos", o qual, depois de ler uma resenha sua deste livro me inspirou e digo que a leitura está muito comovente!


Paula 12/04/2013minha estante
Oi, Leandro! Que bom que minha resenha te animou a ler A solidão dos Números Primos, gostei muito desse livro, realmente comovente. Espero que esta também te anime a ler Valter Hugo Mãe, que amo de todo coração e recomendo com todas as estrelas. um abraço!




ElisaCazorla 04/04/2016

O que resta ao proletário senão a morte?
Livro belíssimo! Valter Hugo Mãe tem uma sensibilidade enorme para construir personagens femininas muito interessantes, complexas, divertidas e dramáticas aos mesmo tempo e que saltam das páginas. Em muitas situações tive a sensação de ouvir Quitéria e Graça conversando bem ao meu lado. Existem partes divertidas, divertidas porque são trágicas e terrivelmente reais.
Neste livro o autor nos leva a imaginar o sonho e o quão importante é o sonhar quando sua vida real não faz sentido algum. Quando nos vemos sujeitas ao opressor, sujeitas ao sistema, sem qualquer possibilidade de saída, o sonho é fundamental. Mas, e se esses sonhos são pesadelos?
A morte perpassa todos os personagens a todo instante. Algo deve acontecer quando nos tornamos conscientes da efemeridade da vida, da falta de um sentido concreto e da impotência diante do revés, da angústia, das tristezas e do vazio.
Levi 04/04/2016minha estante
Mais uma excelente resenha, Elisa! :)


ElisaCazorla 04/04/2016minha estante
Obrigada, Levi =]




spoiler visualizar
Taty Vasconcelos 27/02/2018minha estante
Tambem fiz essa ligação com A elegaância do ouriço!




Alê 09/06/2013

Descobrindo novos autores
Não vou mentir, foi a capa que me interessou. Nunca havido falar de Valter Hugo Mae e nem das suas obras. Digo que, foi graças à CosacNaify que me deu vontade de ler. O design é lindo, não apenas fora mas dentro também, o cuidado é algo que pode ser até uma coisa simples para alguns, mas para mim, é importantíssimo.
Mas, vamos falar da história.
O livro conta passagens da vida de duas empregadas domésticas, o que poderia ser algo sem graça, se torna uma obra interessante e real.
Como ponto negativo, destaco o fato do livro ser escrito em português de Portugal, porém mas do que isso, é a estrutura física do texto.
Os diálogos estão juntos com a narrativa, como um só, como uma só massa de texto. Por isso, o livro não se torna tão fácil de ler assim.
Por fim, digo, que adorei. E que apesar dos pesares, vale a pena ler essa linda obra realista de Hugo Mae.
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Johnny 14/11/2013

valter hugo mãe - o apocalipse dos trabalhadores
Cosac Naify – 185 páginas

O escritor angolano valter hugo mãe (Walter Hugo Lemos) é também artista plástico, cantor e editor. Seu nome artístico se escreve com minúsculas. Como extensão dessa particularidade, quase toda a sua produção literária é marcada pela ausência de maiúsculas, pontos de exclamação e de interrogação, o que pode causar alguma estranheza aos leitores que ainda não o conhecem. Entretanto, basta correr umas poucas páginas de seus textos para assimilar e até mesmo apreciar o estilo adotado. A mim, pelo menos, ensejou maior facilidade para mergulhar no universo subjetivo do autor. valter hugo mãe conquistou ao menos duas honrarias importantes: o Prêmio Literário José Saramago e o Prêmio Portugal Telecom de Literatura. No primeiro caso, o próprio escritor José Saramago, durante a cerimônia de entrega, considerou o romance o remorso de baltazar serapião um verdadeiro "tsunami literário".

O título do romance que li,o apocalipse dos trabalhadores, pode sugerir uma obra politicamente engajada ou panfletária. Longe disso, ainda que a política esteja presente nas mais prosaicas manifestações humanas. O romance fala de seres fodidos que se pegam às voltas com suas migalhas de amor. Conta a história de maria da graça, uma empregada doméstica diarista – em Portugal se diz mulher-a-dias – que trabalha na casa do senhor ferreira, um sessentão solitário. O relacionamento entre patrão e empregada desenvolve-se a partir das insuficiências amorosas de cada um. O marido de maria da graça, augusto, é um homem ausente que viaja o tempo todo pelos mares do mundo e sempre volta para casa de mãos vazias, apenas para demonstrar um pouco mais do seu desprezo pela mulher.

O senhor ferreira abusa sexualmente da empregada pelos cantos da velha casa. Embora procure evitar suas abordagens libidinosas, maria da graça adapta-se às circunstâncias e, com o passar do tempo, no rastro de seus vazios sentimentais, adquire pelo velho uma mistura de afeto e admiração. O maldito - é assim que maria da graça o denomina em suas confidências à amiga quitéria - procura transmitir sua boa cultura à empregada. Assim, entre sessões de faxina doméstica e investidas eróticas do senhor ferreira, maria da graça ouve o réquiem de Mozart, conhece trechos da poesia de Rilke, vislumbra o traço agonizante de Goya. Em toda a sua simplicidade, ela pouco se apercebe daqueles temas tão complicados, uma profundidade que, segundo seu instrutor, busca impressionar a Deus. maria da graça, guiada pela praticidade dos executantes, não vê relações úteis de causa e efeito na erudição que lhe é apresentada, mas é capaz de usar algumas frases
bonitas diante da amiga quitéria.

A única confidente de maria da graça, além do cão portugal apanhado na rua, também é mulher-a-dias. quitéria possui uma dose de cinismo e bom humor que faz dela uma pessoa mais resistente que a amiga em relação às intempéries da vida. Ambas comparecem a cerimônias fúnebres, onde cumprem o papel de carpideiras e levantam algum dinheiro extra. quitéria costuma dizer que o senhor ferreira ainda há de matar a amiga. Isso faz com que maria da graça sonhe, de modo recorrente, que está às portas do céu, diante de um são pedro desdenhoso e indiferente à sua presença. Na praça à frente da pequena porta do céu, uma multidão de vendedores oferece souvenirs da vida terrena, por exemplo, uma gravura de Goya ou uma edição francesa das raparigas em flor, como se as almas que partem para o outro mundo quisessem levar uma última lembrança de sua vida material. Os sonhos evoluem para situações angustiantes. maria da graça parece condenada a ficar ali eternamente, com a admissão no paraíso obstaculizada pelo são pedro, mais a ameaça de que lhe reservem o inferno. Acorda sempre aos prantos.

É a partir de sua confidente quitéria que a trama se estende para abarcar outros trabalhadores, todos fodidos. O namorado de quitéria é um ucraniano chamado andryi, que divide moradia com vários imigrantes e guarda um vínculo familiar muito forte com seus pais de korosten. andryi trabalha em uma pizzaria, depois vai para a construção civil. Manda uns restos dos euros que consegue amealhar para os pais na Ucrânia. Ele sofre com as dificuldades para se adaptar à vida em Bragança, as barreiras da língua fazem-no sentir-se idiota perante os portugueses. Conclui que o caminho para o sucesso naquele país estrangeiro e hostil passa por sua transformação em máquina. Deixa de beber, trabalha duro, ensaia um rompimento definitivo com quitéria, imaginando que fará alguma fortuna se, de certa maneira, despir-se da sua humanidade. Mas é um sujeito emotivo, que chora facilmente ao lembrar dos pais, que pensa em retornar à cidade de korosten. O pai sasha sofre de alguma esquizofrenia, pois matou um policial e vive aterrorizado com a ideia de que virão atrás dele em busca de vingança. A mãe ekaterina sofre pelo marido e pelo filho distante. São todos uns fodidos, que desfilam uma coreografia traçada, a dos mais despossuídos, dos que se nutrem de fiapos de amor e restos de conforto.

o apocalipse dos trabalhadores tocou-me profundamente. Personagens verdadeiros, texto delicado e preciso, de uma crueza elegante que abraça com ternura cada fibra de nossa sensibilidade. Certamente irei atrás de outros romances do autor. Já ouvi falar muito bem de a máquina de fazer espanhóis e de o remorso de baltazar serapião, este último citado anteriormente. Li o romance em voz alta para minha mulher, enquanto curtíamos uma semana na praia. Nas últimas páginas, ali debaixo de uma sombra salvadora, confesso que tive de suspender a leitura por mais de uma vez, os olhos embargados, sentindo uma vergonha besta, com um nó açucarado na garganta. Literatura na veia.


site: https://sites.google.com/site/sibonder/Resenhas
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Rúbia 07/10/2014

Apocalipse dos trabalhadores
No mês passado eu li O apocalipse dos Trabalhadores, do autor Valter Hugo Mãe.
Quem já acompanha o blog sabe que eu conheci o VHM há pouco tempo com a leitura de A máquina de fazer espanhóis e logo que pude eu comprei outros livros do autor e este é um deles.
Acho ele um autor contemporâneo sensacional. Valter Hugo Mãe é angolano, mas vive desde pequeno em Portugal. As edições que estou lendo dele são editadas pela Cosac Naify são escritas em português de Portugal , mas isso é o mínimo perto da escrita dele que é somente em minúsculas, não tem travessão ou aspas nas falas...mas acredite, não é difícil, você pega o jeito da leitura.
Esse livro não me conquistou de cara, foi uma experiência de leitura diferente da Máquina de fazer espanhóis, apesar de ter marcado passagens logo de início, demorei um tempo para entrar na história.
Há duas personagens principais Maria da Graça e Quitéria, elas são diaristas, em Portugal, chamadas de mulher a dias. Vamos acompanhar a vida delas enquanto trabalhadoras, enquanto classe operária e cada uma tem sua história, que se entrelaçam pelos conselhos que uma dá a outra.
Maria da Graça é casada e seu marido trabalha com navios, passando muito tempo fora de casa. Ela mantém um relacionamento amoroso com o patrão muito mais velho, é uma relação que chega a beirar o assédio sexual, mas depois ela descobre que tem um sentimento nessa relação. Ela não gosta mais do marido e faz coisas para que ele fique longe dela dentro do pouco tempo que ele está em casa.
Em determinado momento, algo trágico (trágico mesmo) vai ocorrer a esse patrão e a vida de Maria da Graça vai mudar bastante.
O livro traz umas nuances sobre céu e inferno e ela sonha muito com isso, principalmente com São Pedro, como seria a entrada dela no céu e, em cada cena, isso vai ocorrer de uma forma diferente.
Quitéria tem diversos relacionamentos amorosos, mas vai acabar se apaixonando por Audrey, um rapaz bem mais novo que veio da Rússia e que mal fala o português. Ele saiu de seu país em busca de melhores condições de vida em Portugal, mas nem tudo são flores no novo país. Quitéria passa a ser uma espécie de família pra ele, que deixou os pais na Rússia e ele não tem notícia dos mesmos há bastante tempo, aliás, os pais do Audrey são personagens secundários muito interessantes.
Nas horas vagas e para complementar a renda, Maria da Graça e Quitéria são carpideiras (pessoas contratadas para chorar em velório de desconhecidos) e essas são cenas às vezes trágicas, às vezes engraçadas, mas muito interessantes.
As duas amigas se consideram putas, e o livro contém diversas cenas de sexo, mas todas com um propósito.
Em todo tempo encontramos metáforas comparando máquinas ao trabalho braçal dos trabalhadores, e o sexo aparece como algo mecanizado, de necessidade dos trabalhadores.
É novamente um livro sensacional do Valter Hugo Mãe, reitero que demorei um pouco para me encontrar na história, mas a escrita é sensacional, a história é muito bem contada, assim como a reflexão que ela traz, dos trabalhadores como classe operária, comparados a máquinas e um pouco ignorantes (em contraposição com o patrão de Maria da Graça que é muito culto). Mas também mostra e reaviva o sentimento desses trabalhadores, que são e devem ser tratados muito além de máquinas.
Pretendo continuar lendo mais obras do autor!

site: http://meumundodeleituras.blogspot.com.br/
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Viviane 26/04/2016

o apocalipse dos trabalhadores
Bem, acho que criei muita expectativa quanto ao Apocalipse dos trabalhadores já que havia ficado maravilhada com A máquina de fazer espanhóis. Não senti empatia pelos personagens, muito menos pela história de vida de cada um. Não senti a força da prosa poética do mãe. Definitivamente, não gostei.
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isa.dantas 26/04/2016

Primeiro romance que leio de Valter Hugo Mãe, com sua narrativa que não inclui letras maiúsculas, travessões ou pontos de interrogação e exclamação. Ainda assim, a leitura é muito fluida. Neste livro, ele aborda as histórias e aventuras amorosas de duas diaristas, abordando também temas sociais.
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Alan 21/09/2016

Dos quarto livros que li de Valter Hugo Mãe, este é o que menos me tocou e menos me empolgou na leitura. Terminei por uma questão de força de vontade.

Como li numa resenha mais abaixo, os personagens não causaram empatia, não ao menos da mesma forma como o que você sente por Halla (desumanização), pelo senhor Silva (Máquina...) ou pelo encantador Crisóstomo (Filho de Mil Homens).

Não deixa de ser bom, mas, para algum amigo meu eu indicaria começar pelos outros três.
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Dani.Peghim 09/12/2016

Que livro bom!
No início o livro me causou uma certa estranheza pela forma da escrita, sem pontuações, parágrafos longos e as vezes não tinha certeza de qual personagem falava. Muito diferente do que estou acostumada a ler. Demorei um pouco a engrenar, mas após algumas páginas não consegui mais largar. Achei uma história incrível, sofrida, fiquei com a sensação de pessoas que passam pela vida, nascem, trabalham e sem grandes pretensões e expectativas sobre a vida, inclusive sobre a felicidade. As duas protagonistas acabam se apaixonando e encontram o amor, uma encontra a felicidade na vida, a outra na morte. Adorei!
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Ju 12/04/2017

Foi uma leitura difícil e não fluiu, me incomodou desde o início do livro a violência que a personagem principal transformava em amor pelas mãos do maldito. Ao longo da narrativa com a guarda mais aberta e com vínculo maior com as personagens me senti mais dentro do enredo. A escrita de Mãe é poética e requer disposição de entrega, talvez não fosse muito o momento para mim, porém as cenas em que as duas personagens protagonizam sozinhas foram a pérola do livro na minha opinião.
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Tatiane 06/01/2019

O apocalipse segundo Mãe
Como escreveu Caetano Veloso na música "Dom de iludir", cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. Pensando nessa letra, terminei a leitura de O apocalipse dos trabalhadores, o quarto livro seguido de Valter Hugo Mãe que leio, de dezembro para cá. Até o momento, talvez, tenha sido o mais difícil. O que não significa que tenha gostado menos.

Como já vemos de cara no título, os personagens centrais são trabalhadores, termo que se traduz como aqueles que são explorados, oprimidos, e que lutam por uma sobrevivência minimamente digna, a qual, quase nunca, conseguem. O interessante é que Mãe impõe duas únicas marcas gráficas ao longo de todo o texto: letras minúsculas em tudo, sem exceção, e apenas ponto no final das frases. Não usa interrogação ou exclamação, por exemplo. Talvez, dessa forma, ele coloque, ao menos na teoria, todos num mesmo patamar: pobres e ricos; patrões e empregados, pois é justamente sobre as diferenças, a partir do sofrimento dos que são explorados, na vida prática, que ele vai desenvolver a sua narrativa em minúsculas.

maria da graça, quitéria e andriy pertencem ao mundo dos explorados; senhor ferreira e outros patrões que são rapidamente mencionados, dos ricos. A sobrevivência dos oprimidos se passa poeticamente, no estilo de Mãe, pelo sonho. É o direito de sonhar que, acima do medo, do cansaço e das ausências materiais, permite que os seres oprimidos não enlouqueçam nem morram, embora a morte seja uma presença forte na vida de todos eles, até mesmo como um ganha-pão extra (quitéria e maria da graça são carpideiras, aquelas mulheres contratadas para chorarem o defundo a noite inteira de velório).

Interessante também é perceber no imaginário popular, por meio da personagem maria da graça a dualidade entre céu e inferno. Em seus sonhos, suas conversas com são pedro são um ponto forte da história. Ela é uma simples "mulher-a-dias", expressão portuguesa que designa diarista. E como mulher-a-dias é usada ora como empregada, ora como mulher a ser usada por inteiro pelo solitário, velho e rico patrão que lhe paga nada além do combinado pelo trabalho servil contratado.

"és uma empregada, dizia-lhe a amiga, a menos que esses homens tenham inventado o cif liquido marine não me parece que te façam mais feliz. fazem-me mais triste, eu sei, mas estiveram sempre convencidos de que a obra que deixaram me haveria de fazer feliz. não penses nisso, mulher, trabalha e avança. não penses. e se tenho de pensar depois, às portas do céu, a querer entrar e a ter de justificar tudo. não existem portas no céu, só nuvens e espreguiçadeiras. pois é. tenho de convencer os sonhos disso, que a vida é difícil o suficiente para se exigirem responsabilidade pelo que dela fazemos.

era dia cinco e revoltava-se por ter de ir trabalhar. alguns feriados haviam de ser para todos, pensava, e o velho maldito não lho quis dispensar, ao dia, retornava ela, não lho deu para que descansasse. mas, não obstante, pôs-se cheio de falas mansas sobre a importância da data, a pregar sermões eloquentes, como um político ou dono de um cavalo de dentes pobres ensinado a não sorrir." (p. 36)

Um outro personagem que não posso deixar de mencionar é o andriy que, aos 23 anos, sai da Ucrânia, deixa pai e mãe naquele país sem futuro, migra para Portugal e torna-se, lá, um operário explorado da construção civil. Para sobreviver às adversidades de imigrante e manter seu emprego, andriy transforma-se numa máquina, pois os que vêm de fora têm de ser mais resistentes.

"o andriy entrou em casa e prostrou-se na cama. ficou de botas no ar, o corpo grande de mais a ocupar o tão exíguo espaço da sala. dividia um pequeno apartamento, de apenas dois quartos, com outros cinco homens, e a ele tocara-lhe dormir na sala, ao lado do mikhalkov, o russo que lhe falava das portuguesas como porcas, o andriy não estava com vontade de ouvir nada. ficava masculino, calado de chumbo a querer empedernir para secar todos os sentimentos. se pudesse, esquecia-se de ser emotivo, gostava de acreditar que a vida podia existir apenas como para uma máquina de trabalho perfeita, incumbida de uma tarefa muito definida, com erro reduzido e já previsto, e com isso atender ao mais certeiro objectivo, enviar algum dinheiro para a família na ucrânia, e nem pensar muito nisso e nunca dramatizar a questão." (p. 57-58)

É, assim, através das dores e das pequenas alegrias de cada uma de suas personagens criadas que Mãe nos mostra a sua percepção das relações de trabalho entre explorados e exploradores, quem tem voz e vez e quem não as tem, e porque tantas pessoas, muitas vezes, se submetem a situações tão indignas de sobrevivência. Mas há algo que se sobrepõe a todos os abusos e dores: a amizade e o amor. O autor de novo, como fez no livro infantil O paraíso são os outros, defende por meio de suas personagens femininas, agora com maria da graça e quitéria, que a amizade e o companheirismo são a base do nosso existir no mundo.

"a quitéria ressonava levemente e a maria da graça repensava tudo aquilo. que uma mulher confessava o adultério se estivesse apaixonada, de cabeça perdida, já sem querer saber das consequências. se sabia bem não existir plano algum, seria verdade por todas as provas que estaria de cabeça perdida pelo maldito. e se assim fosse, estando ele morto sem regresso, a sua vida seria uma lenta aflição por esperar quem nunca poderia voltar. cotovelou a quitéria ao de leve, depois violentamente, gritou, quitéria, não me leves a ver um homem sem cabeça, tenho medo, toda a gente está a morrer, eu vou morrer, quitéria, eu já vou morrer. e era verdade, sabiam as duas no seu íntimo que a maria da graça morreria em pouco tempo. abraçaram-se assustadas. no centro da noite, muito irracionais, pressentiram que o mundo armava um cerco em seu redor como se implodindo cada coisa." (p. 86-87)

Mais uma vez, a literatura me permite colocar os pés no chão, de terra batida, para enxergar o outro não a partir do meu mundinho, da minha redoma, mas por meio de experiências de vida que somente a Arte me oportuniza viver.

Obrigada, Valter Hugo Mãe, por essa experiência.

tatiandoavida.com
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Letuza 26/06/2019

Incrível
Hoje foi dia de concluir leituras..
A primeira concluída foi a do meu primeiro livro do autor Valter Hugo Mãe
Adorei o estilo, a história, os personagens e a linguagem. A linguagem é um desafio pois, além do português de Portugal, o autor na usa letras maiúsculas e nem pontuação como exclamação ou interrogação. Mas o livro é maravilhoso.
Trata-se da história de duas mulheres que ganham a vida fazendo faxinas (mulher a dias) e também como carpideiras. O texto vai mesclando a história de Maria da Graça e Quitéria, mas também inclui personagens como o Sr Ferreira, patrão e amante de Graça e Andriy, um imigrante ucraniano namorado de Quitéria. A história traz temas importantes como imigração, crise econômica, suicídio, amizade, machismo, desemprego, fome e amor. É uma viagem pelo mundo muito íntimo das duas amigas, com partes extremamente tristes, engraçadas, de reflexões profundas!
Como certeza irei ler outros títulos do autor!
Recomendo fortemente a leitura ?
#amoler #livros #leitura #valterhugomae #literaturaportuguesa
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Bookster Pedro Pacifico 01/03/2020

O apocalipse dos trabalhadores, Valter Hugo Mãe – 10/10
No início, o leitor pode sentir certa dificuldade e estranhar o estilo de escrita de Valter Hugo Mãe, marcado pela ausência de letras maiúsculas, travessões e por uma pontuação fora do comum. No entanto, depois que se adapta ao estilo de escrita, não tem como não se encantar pela poesia característica dos livros do autor. Em O apocalipse dos trabalhadores, o leitor é mergulhado na vida de Maria da Graça e Quitéria, duas empregadas domésticas que sofrem com uma rotina repetitiva, opressiva e pouco - para não dizer nada - prazerosa. Para conseguir juntar um pouco mais dinheiro, as duas amigas ainda fazem uns bicos como carpideiras, participando de velórios, em que choram pela morte de desconhecidos. Os diálogos entre as personagens, que muitas vezes acabam em discussões, são muito bem construídos e, na minha opinião, o ponto alto da obra. Apesar das diferenças de suas ideias, Maria da Graça e Quitéria têm um forte traço em comum: nunca deixaram de sonhar com uma vida melhor e com a busca da felicidade! E é assim, com essa esperança de dias novos, que as duas vivem ou, na verdade, lutam para sobreviver. Uma narrativa sofrida e impactante, que ainda aborda em diversos momentos o tema da morte, nos fazendo refletir sobre a efemeridade da vida.

site: https://www.instagram.com/book.ster
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Ingrid 06/04/2020


É sempre muito difícil saber o que dizer sobre a obra de Valter Hugo Mãe… Ele me deixa sem ar frequentemente e sem chão a todo momento. Devo dizer que julgo os livros pela capa e título. Absolutamente amo as edições da Biblioteca Azul e o título me fez imaginar algo diferente do que foi construído. No entanto, nenhuma decepção, porque Valter nunca decepciona. É, como sempre, bem construído, sensível, chocante, emocionante e faz com que nos conectemos com as personagens de forma inigualável. Que privilégio viver na mesma época desse escritor.
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