Johnny 14/11/2013
valter hugo mãe - o apocalipse dos trabalhadores
Cosac Naify – 185 páginas
O escritor angolano valter hugo mãe (Walter Hugo Lemos) é também artista plástico, cantor e editor. Seu nome artístico se escreve com minúsculas. Como extensão dessa particularidade, quase toda a sua produção literária é marcada pela ausência de maiúsculas, pontos de exclamação e de interrogação, o que pode causar alguma estranheza aos leitores que ainda não o conhecem. Entretanto, basta correr umas poucas páginas de seus textos para assimilar e até mesmo apreciar o estilo adotado. A mim, pelo menos, ensejou maior facilidade para mergulhar no universo subjetivo do autor. valter hugo mãe conquistou ao menos duas honrarias importantes: o Prêmio Literário José Saramago e o Prêmio Portugal Telecom de Literatura. No primeiro caso, o próprio escritor José Saramago, durante a cerimônia de entrega, considerou o romance o remorso de baltazar serapião um verdadeiro "tsunami literário".
O título do romance que li,o apocalipse dos trabalhadores, pode sugerir uma obra politicamente engajada ou panfletária. Longe disso, ainda que a política esteja presente nas mais prosaicas manifestações humanas. O romance fala de seres fodidos que se pegam às voltas com suas migalhas de amor. Conta a história de maria da graça, uma empregada doméstica diarista – em Portugal se diz mulher-a-dias – que trabalha na casa do senhor ferreira, um sessentão solitário. O relacionamento entre patrão e empregada desenvolve-se a partir das insuficiências amorosas de cada um. O marido de maria da graça, augusto, é um homem ausente que viaja o tempo todo pelos mares do mundo e sempre volta para casa de mãos vazias, apenas para demonstrar um pouco mais do seu desprezo pela mulher.
O senhor ferreira abusa sexualmente da empregada pelos cantos da velha casa. Embora procure evitar suas abordagens libidinosas, maria da graça adapta-se às circunstâncias e, com o passar do tempo, no rastro de seus vazios sentimentais, adquire pelo velho uma mistura de afeto e admiração. O maldito - é assim que maria da graça o denomina em suas confidências à amiga quitéria - procura transmitir sua boa cultura à empregada. Assim, entre sessões de faxina doméstica e investidas eróticas do senhor ferreira, maria da graça ouve o réquiem de Mozart, conhece trechos da poesia de Rilke, vislumbra o traço agonizante de Goya. Em toda a sua simplicidade, ela pouco se apercebe daqueles temas tão complicados, uma profundidade que, segundo seu instrutor, busca impressionar a Deus. maria da graça, guiada pela praticidade dos executantes, não vê relações úteis de causa e efeito na erudição que lhe é apresentada, mas é capaz de usar algumas frases
bonitas diante da amiga quitéria.
A única confidente de maria da graça, além do cão portugal apanhado na rua, também é mulher-a-dias. quitéria possui uma dose de cinismo e bom humor que faz dela uma pessoa mais resistente que a amiga em relação às intempéries da vida. Ambas comparecem a cerimônias fúnebres, onde cumprem o papel de carpideiras e levantam algum dinheiro extra. quitéria costuma dizer que o senhor ferreira ainda há de matar a amiga. Isso faz com que maria da graça sonhe, de modo recorrente, que está às portas do céu, diante de um são pedro desdenhoso e indiferente à sua presença. Na praça à frente da pequena porta do céu, uma multidão de vendedores oferece souvenirs da vida terrena, por exemplo, uma gravura de Goya ou uma edição francesa das raparigas em flor, como se as almas que partem para o outro mundo quisessem levar uma última lembrança de sua vida material. Os sonhos evoluem para situações angustiantes. maria da graça parece condenada a ficar ali eternamente, com a admissão no paraíso obstaculizada pelo são pedro, mais a ameaça de que lhe reservem o inferno. Acorda sempre aos prantos.
É a partir de sua confidente quitéria que a trama se estende para abarcar outros trabalhadores, todos fodidos. O namorado de quitéria é um ucraniano chamado andryi, que divide moradia com vários imigrantes e guarda um vínculo familiar muito forte com seus pais de korosten. andryi trabalha em uma pizzaria, depois vai para a construção civil. Manda uns restos dos euros que consegue amealhar para os pais na Ucrânia. Ele sofre com as dificuldades para se adaptar à vida em Bragança, as barreiras da língua fazem-no sentir-se idiota perante os portugueses. Conclui que o caminho para o sucesso naquele país estrangeiro e hostil passa por sua transformação em máquina. Deixa de beber, trabalha duro, ensaia um rompimento definitivo com quitéria, imaginando que fará alguma fortuna se, de certa maneira, despir-se da sua humanidade. Mas é um sujeito emotivo, que chora facilmente ao lembrar dos pais, que pensa em retornar à cidade de korosten. O pai sasha sofre de alguma esquizofrenia, pois matou um policial e vive aterrorizado com a ideia de que virão atrás dele em busca de vingança. A mãe ekaterina sofre pelo marido e pelo filho distante. São todos uns fodidos, que desfilam uma coreografia traçada, a dos mais despossuídos, dos que se nutrem de fiapos de amor e restos de conforto.
o apocalipse dos trabalhadores tocou-me profundamente. Personagens verdadeiros, texto delicado e preciso, de uma crueza elegante que abraça com ternura cada fibra de nossa sensibilidade. Certamente irei atrás de outros romances do autor. Já ouvi falar muito bem de a máquina de fazer espanhóis e de o remorso de baltazar serapião, este último citado anteriormente. Li o romance em voz alta para minha mulher, enquanto curtíamos uma semana na praia. Nas últimas páginas, ali debaixo de uma sombra salvadora, confesso que tive de suspender a leitura por mais de uma vez, os olhos embargados, sentindo uma vergonha besta, com um nó açucarado na garganta. Literatura na veia.
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