Pandora 06/03/2023Em seu prefácio para esta edição, Fabiana Macchi afirma que “Aglaja detestava que se lesse “a Polenta” como a história da sua vida. Nas entrevistas, quando a pergunta surgia, ela sorria sem ironia e dizia: “A imaginação também é autobiográfica“.”
A narradora deste livro é uma menina romena, sua família (além dela pai, mãe, tia e irmã mais velha) fugiu da ditadura de Nicolae Ceaușescu e vive de forma itinerante trabalhando para o circo em vários países da Europa Ocidental e também na África.
Apesar de se apresentarem de outras formas - o pai, por exemplo, é palhaço e acrobata - todos também participam do espetáculo da mãe, que é acrobata de força capilar (faz acrobacias pendurada pelo cabelo), para que o dono do circo pague hospedagem à toda a família. Além disso a mãe também faz “olhos doces” a outros homens, a tia tem cada hora um marido diferente que lhe dá presentes e o pai faz vídeos amadores tendo como atores os membros da família.
Em uma escrita poética e fragmentada, que mistura realidade e imaginação, assuntos como identidade, exílio, ditadura e toda a difícil realidade de uma família disfuncional de refugiados são retratadas com simplicidade pela lógica ingênua da narradora-criança, em trechos como estes:
“Minha irmã é filha só do meu pai.
Ela come tudo porque minha mãe lhe salvou a vida quando ela estava raquítica e cheia de piolhos.
Apesar de ela ser uma estranha, amo-a como irmã. A mãe dela é filha adotiva do meu pai. A filha adotiva e a mãe dela, a avó da minha irmã e ex-mulher do meu pai, moram num hospital, porque ficaram loucas.
Minha irmã também é louca, diz minha mãe, porque meu pai a ama como mulher.
Eu tenho de tomar cuidado para não ficar louca também, por isso minha mãe me leva junto para toda a parte.” - pág. 30.
“Na Romênia, depois da nossa fuga, meus pais foram condenados à morte.
No hotel, meu pai coloca o armário na frente da porta, a poltrona na frente do armário e a cama na frente da poltrona. Às vezes dormimos todos na mesma cama. Graças a Deus que nem todos os hotéis têm sacada, porque senão é mais uma porta para trancar!
Minhas bonecas também não podem andar sozinhas na rua.
Se temos de nos esconder tanto aqui, não sei por que fugimos de casa.
Jamais poderemos voltar, é proibido.“ - pág. 60.
Dividido em quatro partes, nas duas últimas observamos a entrada da menina na adolescência. Entre seu desejo de trabalhar no cinema, a necessidade de ganhar dinheiro e o estudo que precisa completar, há a erotização precoce pela qual passa em virtude de sua beleza e da natureza do seu trabalho, que passa a ser um sustento não só para si.
“No espetáculo de Pepita, sou muito requisitada.
Faço quatorze números por espetáculo.
Na alta estação, fazemos seis apresentações por dia nas grandes feiras.
Aprendo muito para mais tarde, quando me descobrirem.” - pág. 177.
“Depois de nove meses de escola de línguas, a senhora Schnyder me encaminhou para a orientação profissional.
Lá, passei por testes de conhecimentos gerais.
Os orientadores e eu sentados frente a frente, todos nós completamente perplexos.
A cada pergunta que eu não sabia responder, eles tornavam-se mais amáveis e insistentes, como se eu fosse surda-muda.” - pág. 185.
“Livros deixam a gente burra, diz minha mãe.” - pág 166.
Lírico e cruel ao mesmo tempo. Enfim, a vida como ela é. Porque nem todas as vidas são felizes.
“O que é absurdo na vida absurda?” - Fabiana Macchi, no Prefácio.
NOTAS
1. O título do livro se refere a uma lenda romena que a irmã mais velha da narradora lhe contava para distraí-la e que permeia a narrativa toda.
2. Por que a criança cozinha na polenta recebeu vários prêmios na Suíça e Alemanha; foi adaptado pela própria autora para o teatro e traduzido para várias línguas. Em 2008, houve uma adaptação teatral brasileira com a Cia. Mungunzá de Teatro, dirigida por Nelson Baskerville.
3. Aglaja (De ce fierbe copilul în mămăligă) é um filme HUN/POL/ROM de 2012, dirigido por Krisztina Deák, baseado neste livro.