Eduardo 27/01/2018
Muitas ideias, poucos propósitos e um monte de fantoches e tropeções
Todo Dia tinha tudo para ser um ótimo livro. Tinha. O autor conseguiu destruir sua ideia logo nas primeiras páginas. O resto, mais do que consequência, foi talvez um levante de tentativas para reparar as fendas, o que, mais do que um fiasco, acabou por alargá-las ainda mais.
O livro conta a história de A, um personagem que não é humano (podemos defini-lo como uma espécie de espírito) e nem possui um gênero definido. A, até então com 16 anos, acorda todos os dias em corpos diferentes, todos da mesma idade que a sua, todos relativamente próximos uns dos outros, por uma razão que o autor inventou para que os personagens pudessem ter contato. Ninguém sabe exatamente como isso funciona, nem mesmo o protagonista. Até aí tudo bem, até porque quem decide o que importa ou não é o autor, e não o leitor. Isso fica bastante claro durante toda a leitura. É certo que nem tudo precisa ser explicado, mas quando você se dispõe a criar uma história sobre algo inexplicável, ao menos tente explicar por que decidiu fazer isso, tente mostrar as razões pelas quais as ações importantes acontecem da maneira como acontecem. Até mesmo um boneco de posto tem suas razões para cair e levantar. Neste livro nada tem.
O fato de A ser um personagem diferente pode servir como argumento de defesa para o autor: "ora, ele não é humano; não exija dele ações muito lógicas". O problema é que o autor fez de A, disparadamente, o personagem mais humano de todo o livro. Nesse julgamento a defesa é a própria acusação. Contraditório, não? E esse está longe de ser meu julgo principal em relação ao livro.
Certo dia, A acorda no corpo de Justin e acaba se apaixonando por sua namorada, Rhiannon. Daí em diante ele se torna obcecado por ela e tenta, sempre que possível, usar o corpo de seus outros hóspedes para se encontrar com a garota. A questão geográfica pareceria uma enxurrada de coincidências, não fosse o fato de o autor usar a incógnita de não saber o que se passa com A para justificar esses lugares tão próximos em que eles se encontram. Colocando os pingos nos is, a sequência de coincidências não passa de "mera coincidência" na visão do autor. E também do leitor que é acostumado a ver a história manuseando os personagens, e não o contrário. Eis um erro fatal.
Em Todo Dia David Levithan simplesmente lança um manifesto. Com a obra, ele discute inúmeros temas de seu interesse, como orientação sexual, identidade de gênero, preconceitos, bullying, depressão, exploração... Nesse ponto eu tiro o chapéu para o autor. Ele debate muito bem esses temas, apesar de, em grande parte, usar frases de efeito para encurtar o debate. Essa talvez tenha sido a grande intenção do autor, só que criar personagens rasos, que obedecem à mão do autor, e não a si mesmos, para servir de exemplo em um manifesto e chamar a obra de romance é uma tarefa tão arriscada que até hoje não soube de nenhum caso, exceto esse.
E por que os personagens não deveriam obedecer à mão do autor? Ora, porque a personalidade deve ser respeitada. Um livro cheio de personagens imprevisíveis, incongruentes e jogados na história só para tapar os buracos que o autor criou não é um exemplo muito bom de bom senso e acaba por deixar os leitores sem expectativas. É justamente isso o que acontece durante todo o livro: o autor simplesmente quis criar uma linha de acontecimentos (que não me atrevo a chamar de história – sim, com H – porque canhão vazio não faz guerra) e jogou os personagens lá no meio, totalmente perdidos, e fez o que bem entendeu com eles, sem respeitar a natureza humana, simplesmente para que os fatos se encaixassem e perdurassem até ele terminar o seu manifesto. Que audácia usar os próprios personagens para remendar uma ideia mal estabelecida! E o que o leitor faz com tudo isso? Nada. Não há como ter expectativa porque nada é firme o suficiente para se imaginar um desfecho.
Como se não bastasse o lenga-lenga entre A e Rhiannon, que nada mais são do que cenas e diálogos iguais com rostos diferentes, o autor insere uma possível reviravolta no enredo, por conta de Nathan e o reverendo Poole. Fiquei até entusiasmado, até descobrir que tudo não passava de uma tentativa de manter o leitor "acordado". O autor inseriu ainda mais dúvidas na cabeça do leitor, mudou os personagens conforme bem entendeu para que a história se adaptasse ao que ele almejava, e deixou tudo assim, pela metade. Um bando de fantoches abandonados.
Você pode até me dizer: "Poxa, Edu, mas há momentos em que as coisas 'dão errado'". Não seja ingênuo. Essas passagens provavelmente só foram inseridas para que tudo não parecesse “cronologicamente perfeito demais”. Aliás, essas passagens nada mais são do que dias em que A não pôde se encontrar com Rhiannon; no dia seguinte já estava tudo bem de novo. O curso habitual das coisas consertando a propositada curva na estrada de meia dúzia de linhas. Que original, não?
De forma resumida, David Levithan tinha uma ideia fantástica em mãos. Se bem elaborada e devidamente construída, floresceria a partir daí uma história ímpar, algo realmente original, encantador e questionador. Mas o autor preferiu apenas usar roupagens diferentes para as mesmas cenas, encher a obra de frases de efeito e fazer de seus personagens meros robôs (apesar de A ser extremamente humano). Todo Dia é um romance raso, sonolento, repetitivo e com um desfecho oco, provavelmente escrito às pressas, para dar um mero fim necessário à uma história que exigia um fim mais fundamentado. O problema é que um final bem fundamentado não faria tanto jus aos demais capítulos.