Luigi.Schinzari 07/10/2020
Sobre Enquanto Agonizo de Faulkner
A escrita de Faulkner é um trabalho exigente. Um dos maiores expoentes do método do fluxo de consciência, William Faulkner (1897-1962) foi refinando ao longo de sua carreira sua linguagem que migrava entre narradores ao longo de um único livro. Em O Som e a Fúria (1929), sua obra-prima, encontramo-nos sendo guiados por longos capítulos narrados por algum irmão da família do sul dos Estados Unidos, os Compson (com exceção do último capítulo em que o autor utiliza uma narrativa em terceira pessoa mais tradicional). Um dos mais belos e desafiadores livros da literatura norte-americana, a obra-prima de Faulkner pode não ser um bom livro de entrada ao estilo narrativo do autor laureado com um Prêmio Nobel em 1947 por conta do esforço dispendido em pegar as sutilezas e concatenar os pensamentos desconexos, inicialmente, apresentados pelos problemáticos irmãos Compson. Enquanto Agonizo (1930), obra não menos brilhante de William Faulkner, com capítulos muito mais curtos e uma gama maior de narradores, mostra-se uma perfeita escolha ao leitor exigente mas ainda com receio de encarar O Som e a Fúria.
Sua história concentra-se na tragédia da família Bundren, em que a mãe, Addie, falece logo no começo do livro e incumbe a família desde os tempos de sua doença de lhe enterrar em sua afastada terra natal. Este pano de fundo acoberta intrigas e problemas familiares que sutilmente e com muita maestria vão sendo explorados pela narrativa curta -- os capítulos têm em média quatro páginas -- e pelos pensamentos confusos, como qualquer raciocínio humano caso fosse transcrito ipsis literis, dos vários narradores que nos contam o que se passa do seu ponto de vista; e esta é a principal qualidade de Faulkner: forma-se um quebra-cabeça em que devemos ir juntando, com pequenas informações que nos são dadas, o complexo caso contado desde o início da obra.
Diferentemente de O Som e a Fúria, em Enquanto Agonizo temos uma linha temporal sendo seguida com poucas intervenções em sua estrutura além dos pensamentos desconexos e, por vezes, confusos das personagens -- principalmente daquelas com algum claro quadro psiquiátrico ou com algum tema delicado a tratar: traições, gravidez indesejada, remorso e luto são o recheio da história da família Bundren.
A maestria de Faulkner em dar uma voz própria a cada personagem -- e consequentemente narrador -- imerge o leitor, incialmente confuso por se encontrar no meio de uma situação e de um núcleo desconhecido para ele, rapidamente na vida e nos conflitos ali existentes. Os trejeitos e maneirismos são tão nítidos que o nome de cada um estampado no começo de suas narrações torna-se apenas um apetrecho ao longo da leitura. Basta lermos as primeiras linhas que já identificamos de pronto: este, concentrado e aparentemente o único verdadeiramente lúcido, é o Cash!; aqui, com seu modo impetuoso e distinto, é o Jewel!; este, com seu jeito lúdico e limitado, é Vardaman, e por aí vai.
Enquanto Agonizo -- no original As I Lay Dying --, título extraído de um trecho da Odisseia de Homero, onde Agamenon diz a Odisseu: Enquanto agonizo, a mulher com os olhos de cão não fecha meus olhos enquanto eu desço ao Hades, reflete, em uma percepção inicial, o sentimento do cadáver de Addie, a mãe da família Bundren: seu corpo, dentro do caixão construído pelo filho carpinteiro Cash a seu próprio pedido e com sua inspeção rígida pré-falecimento, não descansa nem mesmo após as penitências da morte lenta e sofrida; são diversas as adversidades encontradas pelos filhos e pelo marido ao transportar seu corpo, como castigos enviados diretamente por Deus: fogo, água, terra, o próprio homem e os maus sentimentos; há uma entidade que não a deixa descansar, e, consequentemente, atormenta, distante daquela realidade, a família Bundren inteira -- e por comiseração àquela família eternamente sofrida o leitor acaba sofrendo por igual, angustiado durante toda a leitura por conta da sucessão de tragédias que os acometem.
Um bom romance deve ser desafiador -- não é possível ter uma verdadeira experiência com um grande clássico sem o absorver tanto quanto ele absorve suas energias e sua compreensão -- e sem dúvidas Enquanto Agonizo é um dos grandes detentores deste título dentro da literatura norte-americana. Deve-se se atentar a cada palavra posta, pois nenhuma foi escrita por Faulkner de modo fortuito; mas isso nunca será um demérito. Muito pelo contrário! O esforço do leitor é traço fulcral para a boa literatura; enquanto o autor quebra sua cabeça para desenvolver um romance com camadas diversas e personagens, tramas e reflexões múltiplas, o mínimo que se exige é a atenção do leitor: e como este será recompensado com uma leitura tão prazerosa e enriquecedora como a de Enquanto Agonizo. Faulkner é completo em sua escrita e a complexidade para adentrar sua obra é um desafio ao leitor faminto e sem preguiça. Não à toa Enquanto Agonizo e tantos outros romances com seu grau de complexidade estão no cânone ocidental enquanto suas contrapartes mais facilmente absorvidas acabam sendo relegadas ao rápido sucesso comercial e logo migram para o ostracismo; ao passo que um clássico jamais deixará os debates e as prateleiras desguarnecidas.