Ana Alice 20/04/2021
Extraordinário
E se o herói da profecia falhasse em sua missão?
É a partir dessa premissa que Brandon Sanderson constrói o enredo de “Mistborn: O Império Final”. O livro narra as aventuras de Kelsier e seu grupo na tentativa de derrubar o Senhor Soberano, o tirano que comanda o Império Final, e libertar o seu povo.
Se a inversão desse tão famoso trope literário, em que, em vez de herói da profecia salvar o mundo, o condena, não é, por si só, motivo suficiente para atrair os leitores a embarcar no mundo de Mistborn, as páginas iniciais fazem esse trabalho.
Muitos acreditam que a parte mais complicada de se escrever um livro é justamente o começo. Afinal, como você, como autor, poderia prender a atenção de seu leitor e convencê-lo a continuar acompanhando a sua história? Sanderson definitivamente estava ciente disso ao escrever “Mistborn”, porque, ao demonstrar um excelente domínio de escrita, tornando-a cativante e fluida, sabe que é altamente provável que o leitor se sinta confortável em supor que aquele será um livro bem escrito.
Narrado em terceira pessoa, o autor ofereceu aos seus leitores mais de um ponto de vista, o que foi extremamente necessário em um enredo tão complexamente trabalhado quanto o de Mistborn, composto por muitos personagens. Logo no início, somos apresentados ao cenário e à sociedade do Império Final.
É inegável o sucesso de Sanderson em construir um conflito de classes entre os skaa, minoria condenada ao sistema de escravidão, a exemplo dos skaa que trabalham em plantações, introduzidos logo nas primeiras páginas, ou ao trabalho em condições subumanas e degradantes, como os skaa urbanos que trabalham nas fábricas por horas excessivas. O livro não só contém críticas ao neoescravismo e ao conceito de supremacia de raças, que é usado como justificativa para o subjugamento dos skaa, mas também ao machismo estrutural, ao apresentar os abusos físicos e sexuais que as mulheres skaa, tratadas como menos que objetos, pelos nobres e funcionários do governo.
Confesso que, inicialmente, é um pouco complicado entender os princípios da alomancia usada pelos brumosos e Nascidos das Brumas, no entanto, ao longo da história, o funcionamento dessa forma de poder inusitada e original é bem explicada, sem a necessidade de info dumps que tornem o processo cansativo de se acompanhar. Desconfio que o modo como os poderes mágicos (entre aspas, porque seria simplista e desleal reduzir a alomancia à simples magia) foram introduzidos e trabalhados por Sanderson seja um dos aspectos que mais apreciei no livro.
Tendo os elementos do mundo introduzidos e desenvolvidos, acompanhamos a vida de Kelsier, um skaa bastardo pertencente a uma classe oprimida e subjugada pela nobreza, que não tem medo de lutar por suas convicções, ainda que o seu passado tenha deixado as suas cicatrizes físicas e psicológicas. É muito improvável que o leitor não seja cativado pela sua gentileza e coragem, e até mesmo pelos seus defeitos, que são mostrados ao longo da obra.
Após nos situarmos brevemente com os objetivos de Kelsier, somos introduzidos a uma nova personagem extremamente importante: Vin, uma skaa sobrevivente do submundo, alternativa dos skaa às plantações e às fábricas, do Império Final. Talvez, ao ler a sinopse, você sinta que Vin é apenas mais um componente do clichê literário da menina sobrevivente que salva o mundo. Contudo, essa protagonista não é limitada ao tradicional arquétipo literário mocinha para que pré-conceitos sejam formados a seu respeito. Vin é uma personagem extremamente humana, tendo medos, inseguranças e dúvidas, também fruto de seu passado complicado nas ruas, mas com as suas vontades e desejos. É essa complexidade da personagem que permite que o leitor possa se identificar com ela.
Não posso deixar de falar sobre os outros personagens, como Ham, Marsh, Brisa, Fantasma, Trevo, Yeden e Elend, que também conseguem atrair a simpatia dos leitores. Embora tenham menos espaço na narrativa, suas ambições e características pessoais são muito bem trabalhadas, o que torna desnecessário que a narrativa foque exclusivamente neles, como acontece com Vin e Kelsier.
E, por último, o antagonista, o Senhor Soberano. Ainda que não tenhamos a narrativa sob o seu ponto de vista, por meio de trechos entre os capítulos de um diário pessoal, foi possivel entender as suas motivações, dúvidas e medos que o levaram a ser um tirano governante do Império Final. Novamente, Sanderson faz um trabalho exímio em construir uma crítica às pseudodivindades políticas da realidade, uma vez que, na mitologia presente em Mistborn, o Senhor Soberano não é só o governante, mas o Deus que deve ser seguido fielmente por todos os seus súditos.
Com uma construção tão boa quanto a do cenário e a dos personagens, talvez você pense que o leitor deixou a desejar na construção do enredo em si, certo?
Errado.
“Mistborn” é um daqueles livros em que o leitor se pega pensando ‘Não tem jeito, agora é o fim da linha para os personagens’, apenas para ser surpreendido pela mente genial de Kelsier ou outro membro de sua trupe. Combinado ao ritmo natural e fluido da escrita de Sanderson, as reviravoltas garantem que quem lê continue fixado nas páginas, tentando prever o que acontecerá em seguida.
O livro, dividido muito bem em cinco partes, com cerca de nove capítulos em cada, excetuando-se a última, segue os três atos comumente utilizados na estruturação de histórias, ainda que os limites entre eles, devido às inúmeras reviravoltas, sejam bem tênues.
Concluindo, acredito que “Mistborn: O Império Final” seja um livro recomendável a todos que apreciam uma fantasia bem construída, embora a faixa etária indicada seja a de adolescentes, por se tratar de um livro juvenil. Com tantas questões deixadas no primeiro livro, estou ansiosa para ler as continuações e me apaixonar novamente pelo mundo criado por Sanderson.