Luigi.Schinzari 18/07/2020
Sobre Tolstói (e não somente sobre sua biografia)
Liev Nikolaievitch Tolstói (1828-1910) é, sem dúvidas, um dos autores mais conhecidos e reverenciados ao longo da história. Junto a qualidade de sua escrita vista em obras como Os Cossacos (1863), sua trilogia Infância, Adolescência e Juventude (publicada ao longo da década de 1850), Anna Kariênina(1875) e o colossal Guerra e Paz (1869) -- algo inquestionável --, um fator em sua essência atrai muita curiosidade: ele mesmo!
Tolstói, em sua longa trajetória -- morreu aos 82 anos, longevo a sua época --, criou uma imagem sólida de alguém controverso: aristocrata que repudiava sua classe (mas, até certo momento, não deixava de usufruir de muitos de seus frutos), sonhava com uma vida campesina idílica em que, de forma altruísta, cria ele, iria ser um educador para os filhos dos camponeses e, mais a frente, um bastião do verdadeiro cristianismo baseado estreitamente no Sermão da Montanha (com influências de crenças orientais como o budismo, vale citar) -- foi um homem complexo até o fim, em resumo. Muitos diriam, mesmo entre seus fãs, que era hipócrita em diversas situações, como, por exemplo, o tratamento dado a esposa, Sófia Andreiévna Tolstáia (1844-1919), sua eterna serva, aos filhos e aos amigos, como o escritor Ivan Turguêniev (1818-1888), com quem teve a amizade estremecida diversas vezes por conta de visões díspares em relação ao mundo -- é esse o autor que tanto fascina.
Ao leitor interessado, encarar suas obras mais parrudas (e também as melhores, na minha opinião) como Guerra e Paz e Anna Kariênina -- este com suas 800 e tantas páginas e aquele com suas mais de 1500, dependendo da edição --, pode parecer um pesadelo. Digo: não coloque empecilhos nisto. Acredito que a única dificuldade real é não desejar que o autor tivesse escrito, ao final da leitura, o dobro de páginas. Tolstói, ao contrário de seu contemporâneo Dostoiévski (1821-1881), busca a situação grandiloquente para esmiuçar o ser humano. Em meio aos escândalos aristocráticos, a invasão napoleônica na Rússia, a guerras no Cáucaso etc., Tolstói falava do homem comum e de seus problemas, suas contradições (como ele mesmo tinha muitas) e seus desejos. E se engana o leitor que acredita serem desnecessárias tantas páginas: cada uma delas está muito bem preenchida com tudo o que o autor tinha a contar, nem um ponto a mais ou a menos.
Em meio a tantas situações contadas de forma impessoal, sempre é prazeroso ver os pitacos de Tolstói, seja como personagem (Liévin em Anna Kariênina, Nikolai em sua trilogia com tons autobiográficos, e por aí vai), ou como um narrador que sofre por suas criações -- e também as faz sofrer e pune quando devem ser punidas (de acordo com sua visão de mundo), vide o romance Anna Kariênina.
Suas obras curtas, por outro lado, têm tanto a dizer quanto os calhamaços. Lembremos da terna Felicidade Conjugal, obra do começo de sua carreira e que narra, de forma muito bonita e sensível (Tolstói encarna uma mulher em sua narração), o amor e suas delícias e amarguras; a obra Os Cossacos, obra sobre a transição de uma jovem moscovita para as tropas cossacas no Cáucaso e as descobertas de si e de sua sociedade feitas por lá, sejam elas boas ou ruins; A Morte de Ivan Ilitch (1880), novela que reflete sobre, como o título bem diz, a morte e seus infortúnios (em resumo, pois é uma obra tão densa mas ao mesmo tempo tão curta); a dura A Sonata a Kreutzer (1889), onde expõe toda sua visão controversa sobre o matrimônio etc. Não são poucas as formas de adentrar sua bela escrita, como deu para ver: essas últimas obras têm em torno de 100, 200 páginas cada, mas com o estofo de uma biblioteca inteira cada, não diferente de seus calhamaços.
Falando nela, Tolstói escrevia de forma bela e pesada: suas descrições poéticas sobre a fauna e a flora, sobre a vida no campo e o trabalho braçal honroso, sobre os palácios em que uma gama de aristocratas festejam e conversam de banalidades até o destino de famílias inteiras; enquanto expõe as mazelas do homem, a inveja, as contradições, a traição e tudo o mais que habita as mentes revestidas, muitas vezes, por sorrisos amarelos; e também como descreve a felicidade de um casal verdadeiramente apaixonado, a alegria real de sentir o suor escorrendo no rosto após o trabalho pesado, o clima mútuo de companheirismo que existe em uma roda de amigos que trocam conversas sobre assuntos vários -- é um artista que pega as duas melhores qualidades (a beleza e profundidade) e a esmiúça à perfeição.
Este é Tolstói. E você deveria lê-lo, pois este texto não é nada em comparação a uma frase em seu momento menos inspirado.