Alê | @alexandrejjr 26/10/2021
O sertão, o jagunço e o Brasil de Ubaldo
Como é difícil falar de um gênio. Mas vamos lá.
O que faz um livro resistir ao tempo? A história? A linguagem? A mensagem? As reflexões? Tudo isso junto? Pensar sobre a dimensão de certas obras literárias é agradável, mas pode explodir a cabeça, dependendo do livro. “Sargento Getúlio” é um desses casos.
João Ubaldo Ribeiro é um autor essencial para se ter na estante se você nasceu no Brasil. Por quê? Simplesmente porque o principal tema dele é o nosso país, nosso povo. Sempre foi. Ele ultrapassa, com certa folga, a dimensão estética, ética e filosófica de autores consagrados que também tentaram refletir, através da literatura, sobre a incompreensível ideia de uma identidade nacional, como Erico Verissimo, Guimarães Rosa e Jorge Amado (e, mais recentemente, Ana Maria Gonçalves). Talvez Ubaldo seja o perfeito amálgama das qualidades desses autores, reunindo, de maneira impressionante, o que cada um deles ofereceu de melhor em seus livros.
Mas “Sargento Getúlio” não é um livro simples e está longe de ser fácil. Eu estaria mentindo se dissesse o contrário. Sua estrutura, composta por longuíssimos parágrafos em uma narrativa que é, basicamente, um monólogo com pequenas inserções de diálogos, pode assustar. E os elementos regionais são fortíssimos! A última vez que vi algo tão extraordinário em termos de representação cultural foi com Ariano Suassuna e seu clássico “Auto da Compadecida”. E não, os dois livros não são próximos um do outro, pois possuem propostas completamente diferentes, apesar de existirem pontos de convergência.
A verdade é que, a partir das veredas abertas por Guimarães Rosa, em 1956, Ubaldo aproveitou para navegar num regionalismo forte, abordando um microcosmo que vai muito além das suas fronteiras. Seja na busca pela oralidade escrita, ou na utilização de neologismos, ou ainda na forte reflexão política - lembremos, o livro foi lançado em 1971, em pleno regime militar no Brasil -, Ubaldo experimenta artisticamente sem se esquecer que seu campo de atuação é a literatura e, portanto, existe um compromisso maior a se cumprir além de toda a busca por um estilo que tente fundir, em um só texto, o erudito e o popular ao mesmo tempo: contar uma história.
E a história é contada. Sargento Getúlio, nosso violento narrador-protagonista, é formidável! Ele é uma espécie de jagunço militar que vive em um Brasil que entra na década de 50 dividido pelas confusões políticas deixadas pela recente ditadura varguista e pelos resquícios do coronelismo em crise no nordeste. Ele é aquele que obedece a uma autoridade sem pestanejar, que zomba dos “udenistas comunistas” e que se emburrece ao pensar na possibilidade de refletir. Ele é uma típica personagem ubaldiana que, mesmo sendo um tipo brasileiro da cabeça aos pés, é capaz de apresentar uma profundidade psicológica shakespeariana, algo recorrente nas vidas criadas pelo autor. Vejam, por exemplo, a profundidade existencial do trecho abaixo, localizado entre as páginas 101-102 da edição que li, quando o protagonista finalmente cede à reflexão sobre o propósito de sua missão, que é levar um preso político do interior da Bahia de volta a Aracaju, capital sergipana:
“Levo ou não levo, é isso. Talvez seja melhor sofrer a sorte da gente de qualquer jeito, porque deve estar escrito. Ou é melhor brigar com tudo e acabar com tudo. Morrer é como que dormir e dormindo é quando a gente termina as consumições, por isso é que a gente sempre quer dormir. Só que dormir pode dar sonhos e aí fica tudo no mesmo. Por isso é que é melhor morrer, porque não tem sonhos, quando a gente solta a alma e tudo finda. Porque a vida é comprida demais e tem desastres. Quem aguenta a velhice que vai chegando, os espotismos e as ordens falsas, a dor de [*****], as demoras em tudo, as coisas que não se entende e a ingratidão quando a gente não merece, se a gente mesmo pode se despachar, até com uma faca? Quem é que aguenta esse peso, nessa vida que só dá suor e briga? Quem aguenta é quem tem medo da morte, porque de lá nenhum viajante voltou e isso é que enfraquece a vontade de morrer. E aí a gente vai suportando as coisas ruins, só para não experimentar outras, que a gente não conhece ainda. E é pensando que a gente fica frouxo e a vontade de brigar se amarela quando se assunta nisso, e o que a gente resolveu fazer, quando a gente se lembra disso se desvia e acaba não se fazendo nada.”
Não é maravilhoso?
Pois é. “Sargento Getúlio” merecia ser mais lido pelo grande público hoje. Tenho a leve impressão de que ele é uma obra esquecida. É claro que é um livro reconhecido, afinal é uma obra vencedora do prêmio Jabuti, teve uma adaptação cinematográfica com o Lima Duarte no papel principal - em uma de suas atuações mais elogiadas da carreira - e acaba de ganhar uma bela edição comemorativa em alusão às suas cinco décadas de publicação, completadas em 2021. Mas ele será lido nos próximos 50 anos? Ou pior: Ubaldo continuará a falar com propriedade desse Brasil marcado pela violência, pela intolerância e pela esdrúxula política que nos representa quando completar seu centenário? Eu espero, sinceramente, que a resposta seja não, que finalmente este livro torne-se aquilo que a eternidade o reservou: ser apenas uma obra de ficção. Será possível? Para o desespero de Ubaldo, onde quer que ele esteja, a resposta ainda é não, pelo menos neste futuro próximo.