Rosa Santana 25/03/2010
"Atrás da Catedral de Ruão"
"Me sinto freudiana hoje... Acho que vou sonhar tarlatanagens".
in Mário de Andrade, "Atrás da Catedral do Ruão"
Essa frase, retirada do conto “Atrás da Catedral de Ruão”, está claramente inserida no seu tempo: o do modernismo. Foi esse o movimento que, após as inovações da semana de 22, se dividiu em duas correntes. Uma delas, liderada por Plínio Salgado, se chamava Verde-Amarelismo. Ela dizia que os artistas deveriam cultivar um nacionalismo primitivo e ufanista. Esse grupo elegeu a anta como símbolo nacional e pregou, inclusive, a volta à língua Tupi. Era xenófobo e criticava o "nacionalismo importado" de Oswald de Andrade e seu grupo, o Pau-Brasil, que mais tarde se transformou no famoso Movimento Antropofágico.
O movimento Antropofágico tinha como ideologia a "deglutição" de elementos de outras culturas, considerados bons, que deveriam ser misturados àqueles estritamente nacionais para surgir daí o que eles chamariam de "nacionalismo crítico"...
Assim o que se tinha era uma briga para estabelecer regras e ideologias do movimento...
No conto “Atrás da Catedral de Ruão”, presente em "Contos Novos", Mário se mostra um perfeito "antropofaágico". Ele nos traz a história de Mademoiselle, uma professora de francês, quarentona e virgem, tomada por um vendaval do “mal do sexo”. Preceptora de duas adolescentes, Alba e Lúcia – abandonadas pelo pai e de certo modo pela mãe, infeliz e distante – Mademoiselle conversa imoralidades e malícias com elas,fixando-se em suas fantasias eróticas no cenário de uma antiga história picante: atrás da Catedral de Ruão. Tudo isso em uma língua meio francesa, meio portuguesa... Intensificam-se tais fantasias até o momento em que Mademoiselle, ao sair de uma festa, imaginariamente é perseguida por dois homens, correndo deles e ao mesmo tempo entregando-se à volúpia de fazê-lo, atrás da Catedral. Quando chega à pensão onde mora, dá um níquel a cada um dos supostos perseguidores, agradecendo, em francês, a boa companhia que lhe fizeram... MA incorpora o que era estrangeiro (o jeito francês de falar!) àqueles elementos nacionais: a cultura, a burguesia ascendente (que vinha da agricultura), o espaço...
Temos que ver, principalmente, que o francês, sendo a língua de prestígio daquele momento, era sinônimo, tb, de superioridade e de poder... Falá-lo provocava admiração e respeito. A personagem principal, desprovida de tudo na escala social, só contava com essa forma de prestígio, de poder. Nem nome tinha, a coitada. A falta de nome, para a personagem, é a denotação de sua quase que nulidade, já que o nome é o que nos caracteriza, que nos identifica entre todas as demais pessoas. É ele que nos tira da vala comum... Que nos torna próprios!!!
O uso de tantas frases e expressões emprestadas da língua francesa, não prejudica o entendimento da história, ainda que o dificulte!! Mas, por que teria Mário de Andrade feito esse largo uso, se não nos levasse a nada?? No plano da história, dos fatos, da narrativa, como já foi dito, não houve prejuízo. Entendendo ou não o sentido das frases, o leitor entende o conto. Nesse plano, as falas em francês podem ser consideradas superficiais, até.
Mas há o plano do discurso. Ou: a maneira como os fatos são narrados, como os personagens nos são apresentados... Ainda: o discurso cria um mundo (aqui, no caso, o mundo se chama “Atrás da Catedral de Ruão”!); as fronteiras desse mundo são estabelecidas pelo discurso. Mais ainda: ele – o discurso - "é" esse mundo! A Análise do Discurso formula o conceito de “morte do autor”, ou seja seu objeto "é" o discurso.
Segundo a AD, o leitor tem que se desdobrar: de um lado o plano da história (em que ele deve prestar atenção no destino das personagens, na ordem dos fatos...); de outro, o plano do discurso (em que se fixa nas idéias do narrador e em sua destreza em exprimi-las) Então uma coisa é o narrador dizer: essa mademoisellle é uma recalcada, reprimida. Outra, é ele mostrar esse recalque, essa repressão. Daí, ele a colocar falando um idioma que não é do leitor, porque assim ela se esconde mais... ele*/ela escamoteia seus sentimentos (os dela!). Ela diz-e-não-diz ao mesmo tempo... e faz-e-não-faz, ao mesmo tempo, o jogo erótico... Sua sexualidade, tão reprimida, é descarregada inconscientemente, seja pela linguagem que usa, seja pela coriza constante (mas isso da coriza já é uma interpretação freudiana...)
Então, o fato de as personagens passarem o conto todo se comunicando... como diriam as meninas, “na meia língua franco-brasileira que se davam agora por divertimento”, é muito revelador. Uma meia língua não existe... O que existem são as meias-palavras que possibilitam o "se tromper de lisière”! ou seja, o sair - ainda que inconscientemente - da fronteira que a protagonista estabeleceu, a partir do que estabeleceram para ela (e para nós todas, as mulheres).
Para esconderem a malícia ambígua do que dizem é que as mocinhas, adolescentes e com os instintos sexuais aflorando, fazem uso das “meias palavras”. Assim, a professora vai pegando trilhas erradas, extrapolando fronteiras sociais... Ao “romper os limites das palavras” ela tenta fazê-lo tb com os convencionalismos sociais. Ela se atropela nas palavras, fica toda desnorteada, esbaforida, erra o caminho de casa. Seu mundo já é, quase, o daquela moça que foi violentada atrás da catedral de Ruão (criada tb, com e pelo discurso)... ela chega, mesmo, a provocar um desvio no seu caminho que a levaria para detrás da Catedral de Santa Cecília... Ali, naquele espaço “pecaminoso”, onde os desejos reprimidos afloram, ela se dá aos delírios de uma velha solteirona virgem, sufocada pelo instinto sexual (assim como já se dera aos delírios devidos às meias-palavras!). É o jogo erótico, construído com e pela palavra, se transportando para a vida da personagem.
Mais: o discurso das personagens é o reflexo de um discurso muito mais amplo, construído a partir de um conjunto de formulações que modelou a mulher, adolescente ou solteirona, a ser, a agir dessa ou daquela forma, a se reprimir, a se esconder diante da força da necessidade sexual, mesmo sendo ela uma necessidade fisiológica (primária) do ser humano, que, por isso mesmo, se revela, cobra, exige... Daí, o jogo do diz-não-diz, do faz-e-não-faz, com a linguagem! Nesse sentido, acho que as expressões em língua francesa são fundamentais e constitutivas para a construção desse "Atrás da Catedral de Ruão".
O que a análise nos leva a concluir é que Mário – e atrevo-me a incluir aqui os demais escritores da primeira fase modernista – transpôs a irreverência, a devassidão e a libertinagem vividas na Semana de Arte Moderna, a despeito do que julgam muitos dos reacionários-leitores-críticos, inclusive de hoje...
.....