spoiler visualizarRonaldo Thomé 03/01/2023
O HOMEM QUE AMAVA OS CACHORROS
Parecia que nada poderia superar 1984 na minha preferência como melhor leitura de 2022. Eu estava enganado.
O Homem que Amava os Cachorros é um trabalho primoroso, que une ficção histórica, thriller policial e livro de memórias. Através do personagem Iván, desvendamos um recorte da história do século 20, por meio dos personagens Trótski (tratado aqui pelo nome, Liev Davidovitch) e Ramón Mercader, militante espanhol que foi treinado para ser um espião e ficar no encalço de Liev.
Iván um dia conhece um homem numa praia de Cuba, chamado Jaime Lopez. Jaime possui dois cães russos, o que imediatamente chama a atenção de Iván. Os dois iniciam uma amizade; um dia, Jaime começa a contar uma história perturbadora sobre Ramón, e como ele agiu para eliminar um personagem importante, que havia sido do alto escalão do governo russo. Mercader fazia parte de um complô internacional, tendo recebido treinamento na União Soviética.
Trotski, por sua vez, foi um revolucionário russo, de temperamento forte e intempestivo, que caiu em desgraça quando o poder no país foi tomado pelo grupo stalinista. O livro alterna capítulos com a vida e a trajetória de ambos, entremeados por trechos em que Iván dá a tônica da história, em sua relação com Lopez.
É um livro impressionante, ainda que de leitura lenta e que exige atenção; embora a prosa de Leonardo Padura seja simples, bem como acessível, são tantos dados históricos que é fácil ficar perdido na leitura (não por estarem descontextualizados, mas sim porque a narrativa é lenta, desenvolvendo progressivamente os fatos que ocorreram na vida dessas pessoas). Em muitos momentos, o leitor poderá sentir que está diante de um livro de História, dado o rigor e a sequência dos fatos que Leonardo encadeia em sua obra. O que Padura busca, aqui, muito mais do que demonstrar a história de dois personagens que protagonizaram um crime, é questionar: como a maior utopia do século XX se desenrolou na mais violenta ditadura que se conheceu até então? Em que ponto houve o erro? Trotski seria o culpado? Stalin seria o único monstro, ou o silêncio dos que o seguiam foi o que fez a diferença? Até que ponto você é uma vítima, quando se omite (ou obedece)? Embora nunca responda nenhuma dessas perguntas, o autor nos obriga a uma série de reflexões.
Outro ponto muito acertado é como o autor humaniza seus personagens, embora nem de longe concorde com o que eles fazem (aqui é onde reside seu toque de gênio: quando os pensamentos e sentimentos dos personagens são descritos, e você nunca sabe onde termina a história e onde começa a ficção). É incrível ver como Liev foi ao mesmo tempo algoz e vítima: toda sua família foi perseguida e seus filhos morreram, mas mesmo assim é difícil sentir empatia por ele; Padura o mostra como um homem arrogante, que muitas vezes exigiu coisas absurdas e abusivas dessas pessoas. Quanto a Mercader, ele é mostrado como um produto do seu meio, criado por uma mulher fanática pelo socialismo, apaixonado por outra agente que se comportava com ele de forma repulsiva; no entanto, foi também capaz de uma série de maldades, todas descritas aqui. No entanto, meu personagem favorito é Iván, o jornalista que aspirava a ser escritor em meio à ditadura cubana: marcado por diversas perdas, violências e frustrações em sua vida, ele se vê jogado numa trama muito maior do que poderia imaginar; isso, somado ao clima latente do medo no país, acabou por esmagá-lo.
Há muitos paralelos entre este livro e 1984, por incrível que pareça. No entanto, por mais que a obra de Orwell seja um clássico que supera sua época, prevendo o futuro, o que temos aqui é um trabalho que o supera, na minha opinião, devido à pesquisa monumental e ao fato de ser por si só um trabalho de recuperação do passado. É como se Padura tentasse fazer um recorte do século e das utopias que não funcionaram. E seus crimes e violências continuam se sobrepondo às gerações que permanecem. Triste, melancólico, sombrio: se 1984 é para mim o melhor livro do século XX (até agora), O Homem que Amava os Cachorros está perto de ser o mesmo para o século XXI.
Indicado para: quem gosta de ficção histórica, bem construída, e de obras que extrapolam os gêneros; de quebra, há boas reflexões sobre os rumos da humanidade – tanto os que agem como os que são arrastados.
Nota: 10,0 de 10,0 (merecia uma nota MUITO mais acima).