@pacotedetextos 17/05/2016NONADA!Conheci Guimarães Rosa há alguns anos, recém-ingresso na Faculdade de Letras.
Claro que já tinha ouvido falar dele quando mais novo; mas, a bem da verdade, nunca tinha me aventurado na sua leitura. Só conhecia, mesmo, "Grande sertão: veredas"…
Ao entrar na Faculdade, interessado em tentar o Mestrado em Literatura, fui atrás da lista de obras recomendadas e, voilà, "Grande sertão: veredas" na lista. Pronto, não poderia fugir.
Coincidentemente, logo depois me matriculei em uma disciplina ministrada pelo Prof. Ulisses Infante, na qual passamos um semestre inteiro dedicados única e exclusivamente às obras rosianas. Foi aí que finalmente descobri Guimarães Rosa!
Mas antes que você pergunte: não, eu ainda não o entendo. Mas isso que é legal nele! A cada leitura, você descobre novas formas de analisar o conto (ou o romance, dependendo de qual obra você esteja lendo). São várias camadas, percepções distintas… Guimarães brinca com as palavras, joga com nossa mente, é rei na arte das aliterações, sinestesias, metáforas, semântica e estabelece uma relação autor-leitor-narrador-escritor-personagem que, se você não prestar a devida atenção, acaba não entendendo nada do texto.
(Quem mais brincaria com o índice do livro, organizando os contos por ordem alfabética, excluindo dessa ordem apenas 3, cujas iniciais, agrupadas, formam JGR – João Guimarães Rosa?)
Em "Tutameia – Terceiras estórias", não é diferente. São 40 contos curtinhos (de três a cinco páginas) e 4 prefácios – espalhados ao longo do livro, ressalte-se – em que JGR conta as mais diversas estórias (na época em que fazia sentido estabelecer uma distinção entre história e estória): fala sobre ciganos, bêbados, estórias engraçadas, trágicas, traições, triângulos amorosos, vida, morte, travessias… Tanta coisa que, se eu for enumerar tudo, não terminarei nunca. Afinal, como disse, a cada leitura há novas descobertas.
Se é pra destacar alguns contos, para mim, são os seguintes (alguns deles versam, numa de suas camadas mais profundas, sobre o ofício da escrita):
- Antiperipléia: a história do guia de um cego, que se responsabiliza pelos relacionamentos amorosos dele;
- Desenredo: a “desestória” de uma traição;
- Esses Lopes: uma história de vingança;
- No prosseguir: a história de um pai idoso que resolve legar ao filho a segunda mulher com quem se casou, bem mais jovem;
- Orientação: a história de amor entre um chinês e uma nativa;
- Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi: a história de um triângulo amoroso;
- Se eu seria personagem: uma história sobre autoconhecimento.
Sem contar o prefácio "Nós, os temulentos", recheado de clássicas piadas de bêbado!
RECOMENDO BASTANTE, pois, a leitura desse livro; mas faço aqui a sugestão dada pelo Prof. Claudicelio Rodrigues, segundo o qual a leitura de Guimarães Rosa ganha muito se feita em voz alta. Testei um dia desses E NÃO É QUE É VERDADE MESMO? Isso é decorrência clara da grande oralidade da obra rosiana (na verdade, qual é a causa e qual a consequência?)
Trechos
. A vida também é para ser lida. (Aletria e hermenêutica, p. 30)
. O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber. (Aletria e hermenêutica, p. 40)
. Cerrando bem a boca é que a gente se convence a si mesmo. (Azo de almirante, p. 55)
. Não há como um tarde demais – eu dizendo – porque aí é que as coisas de verdade principiam. (Curtamão, p. 69)
. As coisas só me espantam de véspera. (Curtamão, p. 71)
. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel. (Desenredo, p. 72)
. Esperar é reconhecer-se incompleto. (Desenredo, p. 73)
. Os tempos se seguem e parafraseiam-se. (Desenredo, p. 73)
. O que mais cedo reponta é a pobreza. Me valia ter pai e mãe, sendo órfã de dinheiro? (Esses Lopes, p. 81)
. Tudo o que é bom faz mal e bem. (Estória nº 3, pp. 84-85)
. Salvo o excepto, um neologismo contunde, confunde, quase ofende. (Hipotrélico, p. 106)
. Palavra nova, só se satisfizer uma precisão, constatada, incontestada. (Hipotrélico, p. 107)
. Amara-a por fé – diziam, lá eles. Ou o que mais, porque amar não é verbo; é luz lembrada. (João Porém, o criador de perus, p. 119)
. Infelicidade é questão de prefixo. (João Porém, o criador de perus, p. 120)
. Viver é obrigação sempre imediata. (Lá, nas campinas, p. 131)
. O que ganho, nunca perco, o que perco sempre é ganho… (Melim-Meloso, p. 143)
. O amor é breve ou longo, como a arte e a vida. (Orientação, p. 162)
. Só o amor em linhas gerais infunde simpatia e sentido à história, sobre cujo fim vogam inexatidões, convindo se componham; o amor e seu milhão de significados. (Palhaço da boca verde, p. 169)
. Note-se e medite-se. Para mim mesmo, sou anônimo; o mais fundo de meus pensamentos não entende minhas palavras; só sabemos de nós mesmos com muita confusão. (Se eu seria personagem, p. 199)
. Mais vale quem a amar madruga, do que quem outro verbo conjuga… (Se eu seria personagem, p. 200)
. Ando a ver. O caracol sai ao arrebol. A cobra se concebe curva. O mar barulha de ira e de noite. temo igualmente angústias e delícias. Nunca entendi o bocejo e o pôr-do-sol. Por absurdo que pareça, a gente nasce, vive, morre. Tudo se finge, primeiro; germina autêntico é depois. Um escrito, será que basta? Meu duvidar é uma petição de mais certeza. (Sobre a escova e a dúvida, p. 213)
. Até hoje, para não se entender a vida, o que de melhor se achou foram os relógios. (Sobre a escova e a dúvida, p. 214)
. Se todos tivéssemos nascido já com uma permanente dor – como poder saber que continuadamente a temos? (Sobre a escova e a dúvida, p. 215)
. Somos os humanos seres incompletos, por não dominados ainda à vontade os sentimentos e pensamentos. E precisaria cada um, para simultaneidades no sentir e pensar, de vários cérebros e corações. Quem sabe, temos? (Sobre a escova e a dúvida, p. 218)
. Às vezes, quase sempre, um livro é maior que a gente. (Sobre a escova e a dúvida, p. 226)
. Quem entra no pilão, vira paçoca! (– Uai, eu?, p. 250)
Curiosidades
. Tutameia significa… “Nonada, baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta, quiquiriqui, tuta-e-meia, mexinflório, chorumela, nica, quase-nada” (p. 233).
. Este foi o último livro lançado em vida por JGR, que faleceu poucos meses após a sua primeira edição, em 1967.
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