spoiler visualizarManu 21/05/2014
"Tudo se ilumina", Jonathan Safran Foer
Em 2005, um jovem escritor, que já havia trabalhado como assistente de necrotério, vendedor de jóias, fazendeiro e ghostwriter, publicava seu segundo romance, "Extremely Loud and Incredibly Close" (em português "Extremamente alto & incrivelmente perto"), incrível e extremamente amado pelos leitores, tanto por sua história (a vida de um menino que perdeu o pai no atentado às Torres Gêmeas em 2001) como por seu experimentalismo formal. Mas vários dos recursos estéticos utilizados por Jonathan Safran Foer (o jovem escritor) nesse segundo romance já estavam presentes em seu romance de estreia: "Everything Is Illuminated" ("Tudo se ilumina"), publicado em 2002, quando Foer tinha apenas 25 anos. Além disso, ambos os livros tratam - além das relações amorosas e das relações entre pais e filhos - da relação entre avós e netos, o que desperta minha afeição.
Em uma conferência em Madrid, em 1981, Julio Córtazar, importante escritor argentino, diria: "Si algo sabemos los escritores es que las palabras pueden llegar a cansarse e a enfermarse, como se cansan y se enferman los hombres o los caballos. Hay palabras que a fuerza de ser repetidas, y muchas veces mal empleadas, terminan por agotarse, por perder poco a poco su vitalidad. En vez de brotar de las bocas o de la escritura como lo que fueran alguna vez, flechas de la comunicación, pájaros del pensamiento y de la sensibilidad, las vemos o las oímos caer como piedras opacas, empezamos a no recibir de lleno su mensaje, o a percibir solamente una faceta de su contenido, a sentirlas como monedas gastadas, a perderlas cada vez más como signos vivos y a servirnos de ellas como pañuelos de bolsillo, como zapatos usados."
A conferência de Córtazar é, na verdade, mais voltada para uma discussão política, mas essa introdução me faz pensar em algo muito importante para a literatura. Os escritores não possuem, tais quais, por exemplo, os pintores (que utilizam as tintas) e os compositores de música (que utilizam os sons), um "material" exclusivo para produzir suas obras; o "material" dos escritores é a própria língua, são as próprias palavras, usadas o tempo todo por todos nós, nas situações mais banais, mais cotidianas. Daí a importância do conceito de "estranhamento", do formalista russo Viktor Chklovski, para o qual "A finalidade da arte é dar uma sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o processo da arte é o processo da singularização dos objetos e o processo que consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção." (Para quem se interessar, ler o texto "A arte como procedimento", presente no livro Teoria da literatura: formalistas russos.) Ou seja, contrariando aquela visão romântica, segundo à qual o texto simplesmente brota - já pronto e acabado - na mente do escritor, o processo de escrita de uma obra literária é, no mínimo, extremamente complexo. O estranhamento de Chklovski implica em que o texto literário nos distancie, nos faça estranhar o modo como comumente o mundo e a própria arte são percebidos; ou seja, resumidamente, é por ele que conseguimos enxergar novidade em algo que, antes, nos parecia comum e ordinário, incapaz de surpreender.
E o estranhamento pode acontecer de inúmeras formas, mas para comentar o livro do Safran Foer, eu gostaria de destacar a própria utilização da linguagem. Tudo se ilumina é dividido em três partes e duas delas são escritas pela mesma personagem: Alex, um rapaz ucraniano que escreve em inglês. O conhecimento gramatical e sintático da língua inglesa de Alex é excelente, mas sua escolha lexical é o que torna o texto bastante peculiar, porque Alex utiliza palavras que, embora sinônimas, não são as palavras efetivamente utilizadas no processo de comunicação:
"Meu nome de registro é Alexander Perchov. Mas todos os meus muitos amigos me apelidam de Alex, pois essa é uma versão mais solta de pronunciar meu nome oficial. Mamãe me apelida de Alexi-pare-de-me-enfezar!, pois está sempre enfezada comigo. Se você quer saber por que eu vivo enfezando minha mãe, é porque eu estou sempre em outros lugares com amigos, disseminando moeda-corrente demais e executando ações que podem enfezar uma mãe. Papai costumava me apelidar de Chapa, por causa do chapéu de pele que eu usava até no mês do verão. Parou de me apelidar assim porque eu ordenei que ele parasse de me apelidar assim. Aquilo me parecia infantil, e sempre pensei em mim mesmo como muito potente e gerador. Tenho muitas, muitas garotas, podem acreditar, e cada uma tem um nome diferente para mim. [...] Também tenho um irmão-miniatura que me apelida de Alli. Não curto muito esse nome, mas curto muito meu irmão; por isso, tudo bem, permito que ele me chame de Alli. O nome dele é Pequeno Igor, mas Papai só o apelida de Sem-Jeito, porque ele vive abalroando as coisas. Há quatro dias prévios, por exemplo, ele azulou o próprio olho ao cometer um equívoco com um muro de tijolos. E se você quer saber qual é o nome da minha cadela, ela se chama Sammy Davis, Junior, Junior. Ela tem esse nome porque Sammy Davis, Junior era o cantor preferido do meu avô, e a cadela é dele, não minha, pois não sou eu que penso que sou cego." (p. 07-08)
A escrita de Alex, na verdade, me fez lembrar um pouco da narrativa de Laranja mecânica, do Anthony Burgess, mesmo que no livro do Foer se trate da linguagem específica de uma personagem, enquanto que, em Laranja mecânica, Burgess tenha criado um dialeto, o nadsat, que mescla gírias inglesas e palavras do idioma russo (e a língua de Alex de Tudo se ilumina, morador de Odessa, é uma mistura de ucraniano com russo, aliás). No livro de Burgess:
"- Então, o que é que vai ser, hein?
Éramos eu, ou seja, Alex, e meus três druguis, ou seja, Pete, Georgie e Tosko, Tosko porque ele era muito tosco, e estávamos no Lactobar Korova botando nossas rassudoks para funcionar e ver o que fazer naquela noite de inverno sem-vergonha, fria, escura e miserável, embora seca. O Lactobar Korova era um mesto de leite-com, e possa ser, Ó, meus irmãos, que tenhais esquecido de como eram esses mestos, pois as coisas mudam tão skorre hoje em dia e todo mundo esquece tão depressa, porque também quase não se lê mais os jornais mesmo." (p. 41-42)
Como eu disse, os textos são bastante diferentes, apresentando níveis de dificuldade distintos (a menos até que aconteça a familiarização), mas ambos apresentam um estranhamento inicial. A linguagem de Alex, em Everything is Illuminated, acaba por retornar à questão da dificuldade do uso das palavras, porque, em determinado momento, as palavras parecem não significar mais; utilizando uma escolha lexical bastante diversa da comumente empregada, é despertado o interesse para o significante, mas, também, para o significado. Além disso, a escrita e o tom da narrativa de Alex irão se contrapor à escrita e ao tom da narrativa de Jonathan (que escreve a terceira parte do livro), que assumem um caráter mágico e mais amadurecido (para vocês verem que magia não é exclusiva de um universo mais infantil, como seria o de Alex). E é esse contraponto que balanceia o livro e lhe dá o tom preciso. Mas, para além da linguagem, o livro causa estranhamento devido às diferentes vozes narrativas e à sua configuração extremamente fragmentada; constituindo-se, portanto, como um dos prazeres dessa leitura a montagem do grande quebra cabeça proposto pelo escritor.
Tudo se ilumina conta sobre um rapaz judeu, Jonathan Safran Foer (homônimo do escritor) que reside nos Estados Unidos e que viaja até a Ucrânia para tentar encontrar Augustine, uma mulher que teria salvo seu avô (e, consequentemente, ele mesmo) dos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Quem acompanha Jonathan - ou "o herói" - nessa busca é Alex (o tradutor), seu avô, também Alex (o motorista), e Sammy Davis, Junior, Junior (a cadela). Então, depois dessa busca, Jonathan escreverá sobre a (possível) história de seus antepassados e Alex escreverá sobre a viagem empreendida por ele, seu avô e Jonathan em busca de Augustine e de Trachimbrod, aldeia onde moraram os antepassados do herói.
A estrutura do livro é dividida em três partes:
1) Capítulos da história escrita por Alex;
2) Capítulos da história escrita por Jonathan (uma história que flerta com o maravilhoso, ao apresentar uma realidade situada no nosso mundo (em 1791), mas extremamente distinta da nossa; ao apresentar um mundo, para parodiar um trecho do próprio livro, aparentado em segundo grau com o nosso); e
3) Cartas de Alex endereçadas a Jonathan (quando esse já retornou aos Estados Unidos). Nessas cartas, sabemos que os dois enviam os capítulos de suas histórias um para o outro, a fim de que elas sejam comentadas; temos, então, comentários de Alex acerca da história que Jonathan está escrevendo, e comentários de Alex sobre os comentários feitos por Jonathan (não temos acesso a suas cartas) à sua história. Essas cartas se tornam muito interessantes, porque, além de ser através delas que sabemos os acontecimentos ocorridos com Alex e com sua família depois que Jonathan voltou para casa, elas também são a incorporação, ao livro, de comentários sobre o próprio livro - e não é uma novidade neste blog que eu seja uma entusiasta desse tipo de escrita. Aliás, não é uma característica da literatura de ficção contemporânea incorporar ao seu texto sua própria crítica? E, então, haverá considerações bastante interessantes, tais como:
"Nós estamos sendo muito nômades com a verdade, sim? Ambos de nós? Você acha que isso é aceitável, quando estamos escrevendo sobre coisas que ocorreram? Se sua resposta é não, então porque você escreve sobre Trachimbrod e o seu avô como faz, e por que você ordena que eu seja falso? Se sua resposta é sim, isso cria uma outra questão, que é: se vamos ser tão nômades com a verdade, por que não fazemos a história mais superior que a vida? Parece-me que estamos fazendo a história até inferior. Freqüentemente nos mostramos como gente tola, e fazemos nossa viagem, que foi uma viagem enobrecida, parecer muito normal e de segunda classe. Poderíamos dar a seu avô dois braços, e fazê-lo alta-fidelidade. Poderíamos dar a Brod aquilo que ela merece, e não apenas aquilo que ela consegue. Poderíamos até encontrar Augustine, Jonathan: você poderia agradecer a ela, Vovô e eu poderíamos nos abraçar, e tudo seria perfeito, bonito, engraçado, e utilmente triste, como você diz. Poderíamos até colocar sua avó na história. É isso que você deseja, sim? O que me faz pensar que talvez pudéssemos colocar Vovô na história. Talvez, e estou apenas pronunciando isso, pudéssemos fazê-lo salvar seu avô. Ele poderia ser Augustine. August, talvez. Ou apenas Alex, se isso for satisfatório para você. Acho que não há limites para a excelência que poderíamos dar à aparência da vida." (p. 241-242)
Como é possível perceber, Alex não é muito diferente de Briony Tallis, de Atonement, de Ian McEwan. Não é à toa que, em determinado momento, o próprio Alex, em uma das cartas, diz:
"Ao escrever, nós recebemos segundas chances." (p. 195)
É trazida para o texto, então, a velha tensão entre realidade x ficção. Mesmo que as personagens estejam, teoricamente, escrevendo histórias de cunho biográfico/autobiográfico, a ficção as libera de serem verídicas, inclusive porque o próprio processo de escrita transforma os acontecimentos. Como consta em determinado momento: "Não era o mundo que era a grande mentira salvadora, mas a vontade dela de torná-lo belo [...]." (p. 113). Escrever não seria a vontade de criar algo belo, mesmo que a beleza não esteja presente no que se conta? Ao mesmo tempo, não estamos "deliberadamente criando ficções necessárias para viver e acreditando nelas" (p. 117) constantemente?
Tudo se ilumina é sobre busca. E é sobre encontro. Mas nem sempre o que se encontra era aquilo que se pensava que encontraria, ou mesmo que se acreditava buscar. E, ao final, a pessoa que encontrou já não é a mesma que buscava. No livro, as personagens mudam. A narrativa muda. O tom muda. E é na mudança que as coisas continuam.
Tenho que destacar a criatividade e a inventividade do Safran Foer na criação de histórias. E é na soma das diferentes partes que a história vai se esclarecendo, e é à medida em que as histórias vão progredindo que o texto se ilumina, fornecendo ao leitor um leque de possibilidades e revelando um escritor que merece atenção.