Rodrigo 07/12/2018“Doze Anos de Escravidão” é um livro autobiográfico escrito por Solomon Northup, um cidadão americano negro e livre que, por uma série de acontecimentos, é raptado e posto em regime de escravidão durante doze anos. A obra escrita por Northup tem o objetivo de mostrar o cotidiano de um escravo no Sul dos Estados Unidos, não poupando o leitor dos detalhes das atrocidades cometidas pelos senhores de escravos.
O livro de Northup foi publicado pela primeira vez em 1853, o mesmo ano em que o autor conseguiu ser resgatado. Um ano antes, em 1852, o célebre romance “A Cabana do Pai Tomás”, escrito por Harriet Elizabeth Beecher, era lançado e acabou gerando uma grande comoção sobre a questão racial nos Estados Unidos. O livro de Beecher é considerado por muitos leitores, entre eles, o presidente Lincoln, uma das principais obras que influenciaram a Guerra Civil e o fim da escravidão. A relação entre os trabalhos de Northup e Beecher é interessante, pois ambas se passam na região do Rio Vermelho e, como é mencionado no início do livro, “alguns incidentes que ele - Solomon - relata, fornecem um paralelo sem igual à minha história (STOWE, 2014, p. 13)”. O próprio Solomon dedica o livro para Harriet, no qual diz que “seu nome é identificado em todo o mundo com a abolição da escravatura”.
A narrativa de “Doze Anos de Escravidão” começa com a seguinte citação
“Tendo nascido um homem livre, por mais de trinta anos gozado da bênção da liberdade em um estado livre e sido, ao final desse período, sequestrado e vendido como escravo, assim permanecendo até ser felizmente resgatado no mês de janeiro de 1853… (NORTHUP, 2014, p. 17).”.
A partir desse ponto, o leitor já pode ter uma noção sobre o que lhe espera nas páginas que virão. Nos primeiros capítulos, Solomon vai narrando um pouco sobre a trajetória de seu pai, que havia tornado-se livre por volta de 1800/1805 e de que após algum tempo após sua libertação mudou-se para Minerva, uma cidade no estado de Nova York. Também fala um pouco sobre a formação de sua família e de como era a sua pacata vida no norte. Em determinado momento no primeiro capítulo, ao relatar os seus encontros com escravos do sul, é gerado um contraste interessante sobre a questão da liberdade que vai ser um dos pilares centrais da narrativa. Sem alongar-se muito na descrição de sua vida antes da escravidão, no capítulo dois, Northup começa a relatar sobre os acontecimentos que o levou para os doze tortuosos anos de sua vida.
Os acontecimentos que levaram Solomon a ser pego e posto em regime de escravidão são um pouco confusos. Devido a uma doença que teve enquanto estava em Washington, acabou tendo os documentos que comprovavam sua liberdade roubados e a falta desses papéis foi fundamental para que fosse pego por vendedores de escravos. É interessante observar que, o próprio Solomon, por viver em um estado no qual não precisava de documento algum para provar sua liberdade, no decorrer do livro vai ser mostrado enormes contraste, como mostrarei nos trechos a seguir.
"Preciso confessar que na época pensei que quase não valia a pena fazer aqueles documentos - já que a percepção do risco de minha segurança pessoal jamais tinha se manifestado a mim, nem da maneira mais tênue (NORTHUP, 2014, p 29)."
"Um escravo pego longe da fazenda de seu senhor sem salvo-conduto pode ser preso e açoitado por qualquer homem branco que encontre (NORTHUP, 2014, p 128)."
Esses dois parágrafos demonstram ao leitor a enorme dualidade que havia nos Estados Unidos antes e até mesmo depois da Guerra Civil Americana. Enquanto em diversos estados um homem negro poderia andar livremente, no sul, sequer poderia ser pego andando a serviço de seu senhor sem um salvo-conduto.
“Doze Anos de Escravidão” aborda diversos tópicos essenciais para que o leitor entenda o sistema escravista sulista nos Estados Unidos. Além do contraste exemplificado no parágrafo anterior, as situações que Solomon passa, vai desnudando a sociedade americana pré-Guerra Civil de uma maneira que jamais havia visto. Em muitos momentos, Northup critica e mostra as diversas contradições da sociedade americana, como no trecho a seguir
“Então passamos, algemados e em silêncio, pelas ruas de Washigton, atravessando a capital de uma nação cuja teoria de governo, dizem, repousa sobre a fundação do direito inalienável de qualquer homem à vida, à LIBERDADE e à busca da felicidade! (NORTHUP, 2014, p 47)."
Essa citação tem uma ligação com a Declaração da Independência, principalmente sobre a questão da liberdade. Mas as críticas à Declaração da Independência não param por aí, em outro trecho, Bass, o homem que ajuda no resgate de Solomon, explana a seguinte frase: “Agora deixe eu lhe fazer uma pergunta. Todos os homens são criados livres e iguais como a Declaração da Independência diz que são?”.
Ainda sobre o tópico da liberdade, há uma breve relação entre o texto de Tocqueville com o de Solomon, quando Tocqueville menciona
"A religião vê, na liberdade civil, um nobre exercício das faculdades do homem; no mundo político, um campo entregue pelo Criador aos esforços da inteligência… A liberdade vê na religião a companheira de suas lutas e seus triunfos, o berço de sua infância, a fonte divina de seus direitos (TOCQUEVILLE, 1987, p 42).".
Essa fala de Tocqueville sobre religião e liberdade, ao meu ver, remete à parte que Solomon narra como eram as comemorações de Natal e como essa data religiosa dava uma sensação de cidadania aos escravos, Solomon fala
"Nessas ocasiões eles são vistos indo apressados em todas as direções, os mortais mais felizes que se podem ver na face da Terra. São seres diferentes do que quando estão nos campos; o descanso temporário, o breve intervalo do medo e do açoite, produz uma completa metamorfose em sua aparência e atitude (NORTHUP, 2014, p 178).."
Além dessa liberdade, a questão da cidadania se dava também aos casamentos entre escravos que, como Northup relata “eram frequentes entre as festas”.
Apesar de os pontos que explanam sobre a liberdade no que se refere à população negra dos Estados Unidos pré-Guerra Civil, Northup mostra ao leitor que as atrocidades pela qual os escravos passavam era o que predominava naquela sociedade. A desumanização dessas pessoas ia de ter que mudar o seu nome de acordo com seu senhor até as mais horríveis torturas. Junto à narração dos horrores e acontecimentos cotidianos, Solomon faz um incrível panorama de como as fazendas funcionavam, como era o trabalho no campo etc. A sua narrativa sobre o funcionamento da lavoura entre outras atividades beira uma descrição técnica, o que, ao meu ver, torna o livro mais interessante para que o leitor possa ter uma visão ampla de toda a estrutura da sociedade sulista. Solomon, ao narrar esse ponto, não torna a leitura arrastada ou maçante, mas sim enriquecedora para análises históricas. O relato e a visão de Northup sobre o arranjo social dos Estados Unidos de 1841 a 1853 é, sem dúvidas, o grande ponto do livro.
A perspectiva de Solomon sobre corpo social sulista é brilhante. Ao acompanhar a jornada de Solomon durante os dozes anos em que foi escravo, o leitor consegue extrair diversos tópicos para uma reflexão sobre a época e a escravidão. Há pontos em que Northup, ao narrar sobre pessoas que conheceu durante o seu trajeto até o sul, nos depararmos com questões acerca de gênero, por exemplo. Ao descrever seu contato com Maria, ele fala que a mesma tinha certeza de que quando chegasse em Nova Orleans seria comprada por um homem branco, deixando a entender que esse comprador a tomaria como objeto sexual, privando-a do trabalho árduo. Sobre a questão de objetificação da mulher negra, a filósofa Djamila Ribeiro em alguns artigos de seu livro “Quem Tem Medo do Feminismo Negro?”, levanta a questão de como essa objetificação da mulher negra e o uso do seu corpo como forma de ascender socialmente provinda do regime escravista nas Américas ainda encontra-se presente nos dias de hoje.
Passando pela questão de gênero, em diversos pontos é notável ver uma das bases para a teoria de Fanon entranhadas no texto de Northup. Ao relatar as “qualificações necessárias num feitor”, nas quais elenca “crueldade, brutalidade e violência”, faz com que “aguilhoado até a loucura incontrolável, o próprio escravo às vezes se volta contra o seu opressor”. Podemos ver uma frase semelhante em “Os Condenados da Terra”, um dos textos mais célebres de Fanon onde diz “o colonizado está inferiorizado, mas não convencido de sua inferioridade. Espera pacientemente que o colono relaxe a vigilância para lhe saltar em cima.”. Mais a frente na história, Northup volta a falar sobre a violência como forma de derrotar a escravidão num trecho muito próximo à teoria do Fanon.
"Enganam-se aqueles que dizem que o escravo ignorante e sem estudo não tem ideia da magnitude das injustiças a que é submetido. Enganam-se aqueles que imaginam que, ajoelhado, ele se põe de pé com as costas laceradas e sangrando, cultivando apenas o espírito de submissão e perdão. Um dia pode vir - virá, se sua prece for ouvida -, um dia terrível de vingança, quando será a vez de o senhor gritar em vão por misericórdia (NORTHUP, 2014, p 201)."
“Doze Anos de Escravidão” é uma ótima fonte para conhecermos melhor um passado assombroso dos Estados Unidos e, ao meu ver, o livro influenciou diversas obras ficcionais sobre o tema da escravidão, como os aclamados “The Underground Railroad” e “Amada”. Diversas situações retratadas nos livros citados são expostas por Solomon Northup. No caso de “The Underground Railroad”, para alguém que já leu o “Doze Anos de Escravidão”, algumas cenas são muito semelhantes a ponto de o leitor se perguntar qual livro está lendo.
Por ser um grande fã de ficção e me interessar pelas questões raciais, a leitura de “Doze Anos de Escravidão”, para mim, foi incrível. A oportunidade de entrar em contato com uma fonte histórica rica de detalhes me faz ler livros de ficção sobre o tema com um olhar mais aguçado.
“Doze Anos de Escravidão” é uma obra importantíssima para qualquer estudante de História. É forte, cru e impiedoso, assim como a escravidão. Reflexões são geradas, conhecimento é adquirido e, acima de tudo, há o lugar de fala de quem viveu o terror das fazendas sulistas em uma época que o normal era barbárie. É o tipo de livro que vai contra a história única. Como menciona a premiada escritora Chimamanda Ngozi Adichie em um discurso sobre história única
"A forma como (as histórias) são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo depende do poder. Poder é a habilidade não só de contar a história de outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela pessoa.."
Ao publicar “Doze Anos de Escravidão”, Solomon, em uma sociedade na qual não tinha local na hierarquia de poder, faz com que sua história seja contada por sua própria palavras.