notmuchcompany 28/01/2022
"Esta é a sua jornada e, se um dia vai deixar você descansar, acredito que seja um problema que você deveria tentar resolver por si mesma".
Li esse livro pela primeira vez em 2015 e hoje acredito que algumas histórias precisam te encontrar na época certa. 2015 não foi a minha época certa pra Menina Submersa. Por diversos motivos, eu o li e até curti, mas não consegui me conectar ou absorver metade da grandiosidade que é essa história. Acho que eu sabia disso, porque a ideia de releitura martelava na minha cabeça. Eu já tinha esquecido a trama por completo, tinha só uma ideia bem vaga do conflito, então ler tudo de novo seria como ler pela primeira vez. Aí ocorreu que no final do ano passado, eu e a @morena_borges_ combinamos uma leitura em dupla. Fiquei empolgada demais! Nosso objetivo era observar a narrativa com um olhar mais técnico e ter umas aulas de escrita criativa direto com a autora.
Mas não deu, gente. Não deu pra olhar pra essa história só com olhar técnico porque PQP, que história! É difícil demais não se envolver com os desdobramentos da mente da Imp, não ser sugada por ela como narradora, como espectadora da própria vida, como investigadora das circunstâncias, como alguém que não pode nem confiar em si mesma.
"Vou escrever uma história de fantasmas agora".
O livro tem poucos personagens e todos eles são marcantes à sua própria maneira. Há a psiquiatra, Dra. Ogilvy, uma fonte de apoio para a protagonista e uma maneira de explicar alguns processos mentais para quem está lendo. Há Abalyn, a namorada leal e a própria voz da autora (uma mulher trans, como Abalyn). Há Eva Canning, o enigma, a sedução encarnada e a personificação de uma assombração. E há Imp.
Imp (Indian Morgan Phelps) é a protagonista-narradora. Ela escreve pra si mesma, pra tentar entender certos eventos que a assombram. Aos 20 e poucos anos já carrega o diagnóstico de esquizofrenia paranoica, além de apresentar traços obsessivos-compulsivos e de mentir quase que compulsoriamente. Isso faz dela uma narradora não confiável, do tipo que relata vários parágrafos de acontecimentos para em seguida dizer que não tem certeza se aquilo tudo é verdade. Muitas vezes Imp mente por não conseguir desvencilhar a realidade do ficcional criado por seu próprio cérebro, então ela falta com a verdade mesmo tendo certeza de que está contando fatos.
"Muitas das minhas lembranças mais interessantes parecem nunca ter acontecido".
Além disso, Imp lida com uma mente confusa, que se move em espiral e que se superanalisa até quando desestabilizada. Mas não se assuste, é possível acompanhá-la mesmo no período mais sombrio da história. Isso porque Imp é envolvente em sua escrita e tem uma incrível capacidade de insight. Ela traz referências a quadros, livros, contos de fadas, pessoas reais, mitos e músicas, e conta coisas muito interessantes, como a história da Desconhecida do Sena, por exemplo (sério, googlem).
Caso isso não seja o suficiente pra te manter centrada na trama, a autora também usa a ardilosa ferramenta de fazer com que Imp vez ou outra nos apresente resumos sutis de tudo o que tem acontecido. Isso pode ocorrer em formato de contos – onde Imp apresenta seus conflitos através de analogias, metáforas e representações – ou de repetições e loopings pela história. De qualquer maneira, a coisa funciona e você não se perde na confusão mental de Imp.
Fazer com que as coisas permaneçam tendo sentido é um mérito e tanto da autora! Geralmente, livros narrados por pessoas com transtornos mentais que as tiram do contato com a realidade são curtos, mas A Menina Submersa consegue se manter firme e interessante por três centenas de páginas.
"Não há palavras certas para trazer uma assombração para a luz e prendê-la com tinta e papel".
Nossa conexão com a história é a Imp. Ela é ao mesmo tempo a ponte e quem nos ajuda a atravessá-la. É difícil fazer isso com personagens não-confiáveis, ainda mais com a visão comercial que predomina no mercado das narrativas. Por isso, muitas pessoas leem Menina Submersa e não curtem, ou dizem que não conseguem entender: é essa linha comercial que costuma nos entregar tudo mastigado e de maneira linear. Aí temos a Imp, que mente, fantasia, joga luz sobre outras coisas, encontra relevância em referências obscuras e que narra em ziguezague e conduz toda a história a partir de suas percepções e realmente se torna difícil a acompanhar. Mas a autora consegue emergir entre tudo isso lindamente e nos mantém cativas e ancoradas ao texto.
Outra ferramenta pra isso é o interesse amoroso de Imp, a Abalyn – uma mulher que Imp literalmente encontra na calçada e leva pra casa. Abalyn, passando por seus próprios dilemas e trazendo relatos sobre a dificuldade em lidar com sua própria pele, serve como nossos olhos durante a leitura. Através dela enxergamos Imp de uma maneira que Imp mesma não se enxerga. Vemos como seu estado mental degringola durante a narrativa e como ela se autonegligencia por causa disso. Sentimos a preocupação de Abalyn e o peso de um relacionamento profundo com alguém cuja realidade difere da nossa. E Abalyn tem uma escolha difícil de se fazer e fácil de se julgar: se doar pra alguém que você deixou de reconhecer de uma hora pra outra, ou se priorizar pra não ser sugada?
"— Porque você atende ao telefone quando ele não toca?"
Até mesmo Imp deixa de se reconhecer. No meio do livro, em um dos melhores capítulos, afundamos junto com ela na doença, na loucura, nos pensamentos obsessivos-compulsivos que, na ausência dos medicamentos, a fazem repetir e escrever por dias a fio o mesmo trecho de uma canção de Alice no País das Maravilhas. Nessa parte, as lacraias (quando algo gruda na mente, sabe?) tomam conta da vida dela e até das páginas do livro (e, depois de ouvir a versão que o Franz Ferdinand fez pra essa música, tomaram conta da minha cabeça também, diacho!). É um trecho pesado, angustiante, esclarecedor, e ao mesmo tempo apresenta uma sutileza muito habilidosa da autora.
"Você tem de tomar cuidado porque assombrações são contagiosas".
Ok, e quanto ao conflito da história? Sobre o quê Imp tanto escreve e o que ela busca?
Entender. Ela quer entender se Eva Canning é real, se ela realmente apareceu pra ela, e quantas Evas existem.
"Como a morte não poderia parar para mim, gentilmente parei para ela".
Eva Canning é uma mulher misteriosa que Imp encontra certa noite à beira de um rio, nua e confusa. Assim como fez com Abalyn, Imp a leva pra casa e é aí que o conflito toma corpo, porque Imp tem a absoluta certeza de que isso aconteceu duas vezes, em meses diferentes, em estações diferentes, e com duas Evas diferentes. Então ela discorre o máximo que consegue sobre isso, indo e vindo em suas memórias, por vezes evitando os relatos mais contundentes e reveladores.
Outra de suas assombrações é um quadro que ela viu em uma galeria anos antes e que dá título ao livro. "A Menina Submersa" é descrito e analisado por Imp quase à exaustão, assim como seu pintor, a biografia dele, e a história por trás da pintura. A autora oferece tantos detalhes sobre o quadro – ilustrado no início do livro – que é difícil acreditar que essa obra não existe de fato, que foi tudo criado pra contar a história. O mesmo acontece com outros quadros, trechos de notícias e artigos citados pela Imp. Essas criações conferem um realismo único ao livro.
"Este poderia ser meu bolso cheio de pedras" (em alusão à Virginia Woolf).
Não gosto de alertar sobre gatilhos (tenho uma visão diferente sobre eles), mas fica o aviso: Loucura e suicídio são temas recorrentes da escrita da Imp. Ela discorre sobre o próprio estado de saúde mental, sobre instituições psiquiátricas, sobre as mortes da mãe e da avó – consideradas insanas e ambas suicidas – e volta e meia retorna a discursos de ideações suicidas. Em certo momento, após abrir mão dos medicamentos (aos quais ela se refere como Monsieurs), em uma cena angustiante e dolorosa, ela chega a tentar tirar a própria vida na banheira.
Afogamento, água e sereias são outros elementos recorrentes da trama, em uma conexão que vai se montando aos poucos e que forma um panorama compreensível do dilema de Imp.
É importante ressaltar que apesar do tom e do tema, Menina Submersa tem uma trama que cativa. A gente quer, junto com a Imp, descobrir a verdade. Afinal de contas, Eva é real ou não? Seria ela apenas uma analogia pra doença mental crescente de Imp? De onde Imp a tirou? Abalyn realmente a conheceu? E qual das duas versões de Eva é a verdadeira (se é que alguma)?
Quanto a isso, também não há decepções. A autora nos guia pelas investigações da Imp e a resolução é satisfatória, até surpreendente. Interessante perceber como não é necessário se utilizar de algo bombástico para criar uma reviravolta digna de nota. Esse livro é a prova disso e ele só precisa de algumas linhas pra mostrar.
"Acho que um monte de pessoas que se tornaram santas eram, na verdade, apenas doidas".
Menina Submersa foi meu primeiro contato com a escrita da Caitlín R. Kiernan e foi um ótimo começo. É uma obra pra ser degustada com calma porque, como diz a sinopse, ela tem camadas e é um pecado deixar que essas camadas passem pela gente sem maior escrutinização (como eu fiz, em 2015). A mente de Imp merece a atenção e eu sugiro que ela seja lida com uma caneta e um bloco de anotações ao lado (só para os preciosistas de livros, porque o meu está todo marcado e repleto de anotações pelas margens). A Morena Borges e eu já fomos atrás de outras obras da autora e esperamos nos envolver tanto quanto com essa.
(A propósito: uma recomendação extra que eu faço é ler em dupla. Já tinha feito outras vezes e é sempre bom, mas com a complexidade de histórias assim fica ainda mais significativo. A troca de ideias ajuda a gente a absorver melhor os elementos e suas nuances. Agradeço à minha dupla, @morena_borges_, pela ótima companhia. Bora pra próxima!)
Se você curte histórias de amor, se embrenhar pela psique humana e se aventurar fora da zona de conforto, então aceite encarar os escritos da Imp. E se você for comprar a edição física, considere a em capa dura, com detalhes em relevo e corte rosa. É linda demais (Darkside, né. Nada mais precisa ser dito).