GioMAS 25/10/2022
Uma dose de consciência histórica
Para compreender "O coração das trevas", ao finalizar o livro, é necessário refletir. A conclusão não nos chega de pronto, mas se estabelece aos poucos, como uma névoa triste que vagarosamente toma forma e remonta em nosso inconsciente todas as passagens da obra. Por minutos, permaneci inerte fitando o vazio, até que uma centelha de entendimento recaiu sobre mim.
Vejam bem, trata-se de um livro sobre a visão antropológica do europeu, descrito como o homem civilizado, detentor da cultura mundialmente aceita e exaltada, sobre os povos originários da África, mais especificamente do Congo. A percepção equivocada sobre diferentes costumes e culturas justifica, no contexto histórico em que a narrativa se desenvolve, a dominação, o massacre e a barbárie com os povos nativos. A obra demonstra como a incapacidade de aceitação do outro permite ao europeu implementar o neo colonialismo brutal.
Por vezes, um leitor menos atento poderá se perder no enredo, ignorando algumas das referências à construção da ideologia do "nós versus eles". E elas estão lá, o tempo inteiro, seja na passagem em que o médico adota um procedimento de medição do crânio, para identificar supostas características europeias em Marlow, seja na idealização do caráter e da inteligência de Kurt, um sanguinário comerciante de marfim ou, ainda, na referência à religião de matriz africana, representada pela figura de uma mulher, descrita como selvagem que, aparentemente, é a personificação de um ser místico, muito semelhante aos orixás.
As consequências do imperialismo ou neocolonialismo são retratadas de forma explícita e implícita, eis que, apesar do personagem narrador não ser absolutamente favorável às práticas de dominação, também não se opõe efetivamente. Explico, a sua inserção naquela realidade, no contexto histórico em que vive, contribue para a naturalização da violência.
Esta dualidade é bem evidente em um trecho da sua narrativa, cuja transcrição certamente enriquecerá a minha modesta e despretensiosa resenha:
"[...] A conquista da terra, o que na maior parte significa tirá-la daqueles que tem uma fisionomia diferente ou narizes ligeiramente mais achatados do que os nossos não é uma coisa bonita quando você olha demais para ela [...]".
Na sequência, em oposição à constatação inicial, Marlow justifica a colonização:
" O que a redime é somente a ideia. Uma ideia que está por trás; não uma pretensão sentimental, mas uma ideia, e uma crença não egoísta na ideia ? algo que pode se erguer, para depois se curvar diante e oferecer um sacrifício."
Antes de iniciar a leitura, esperava por descrições explícitas e pormenorizadas dos horrores vivenciados nas jornadas exploratórias, aguardando, inclusive, pela presença de metáforas sobre o demoníaco, o sobrenatural.
Ao revés, o livro explora o inconsciente de um homem habituado aquela realidade, mas que, ainda assim, demonstra certa estranheza e repulsa com a desumanização de outros povos, constatando, por fim, que se deparou com a representação do "horror, horror, horror" puramente humano.