spoiler visualizarDenise 02/11/2022
"aquela vida misteriosa...na selva... no coração das trevas"
Esse livro soube exatamente ser sombrio, sendo condizente com o próprio nome "Coração das Trevas". Navegamos pelos rios da África numa época imperialista, adentrando no coração desse continente e no coração dos que o invadem. Primeiramente, gostaria de falar que não é uma leitura muito fácil, já que a narrativa se torna meio densa em alguns pontos, mas percebe-se a importância de um livro desse e a maneira como ele transcreve toda uma relação entre o imperialismo europeu e o tratamento com os povos originários da África.
A história inicia com o personagem inicial num navio nas águas do Tâmisa e, assim, o capitão Marlow começa a contar sua história: Como já havia participado de uma Companhia exploradora de marfim no continente africano. Marlow, ao contrário de outros participantes da companhia, tinha apenas o desejo de conhecer o "coração" africano, área do mapa que antes estava em branco. Ele possuía um desejo de se aventurar por aquelas matas e descobrir o que havia por trás dela. Assim, ele se depara com um sistema hipócrita e explorador, percebendo a dor e o cansaço no olhar e nos movimentos dos "selvagens".
O homem branco se disfarçava com uma proposta altruísta de civilizá-los, um 'fardo' a ser carregado, aproveitando disso para justificar uma ganância sem precedentes, insaciável, de desejos materiais. Assim, tanto a terra africana, quanto seus moradores eram explorados e vendidos. Marlow expressa uma certa visão mais empática logo no início, quando afirma que a Europa também já havia sido "trevas", quando os romanos chegaram pela primeira vez. O capitão adentra na selva num barco a vapor, navegando rio abaixo com a floresta a seu entorno e vultos negros de aborígenes sofrendo a pauladas, correndo com sua tribo ou invadindo casas isoladas que lá haviam. Nesse ponto, Joseph Conrad soube exatamente como mostrar a sua opinião a respeito de toda aquela exploração, aquela barbaridade feita com esses povos, que era os considerados "bárbaros". O desejo por marfim era visível no olhar de cada homem daquela Companhia. Essa seria a "vingança" da selva: o desejo materialista dos homens os consumiria por completo, e, os que tivessem uma consciência do próprio estado degradante, enlouqueceriam.
Após um longo tempo de navegação, Marlow é convocado para uma missão ao lado de outros peregrinos, sedentos por marfim, e o gerente deles, com o objetivo de achar e "resgatar" o senhor Kurtz, um homem que já havia sido de extrema importância para a companhia. Kurtz já havia escrito um relatório para Sociedade Internacional para a Eliminação de Costumes Bárbaros, com sua capacidade esplendorosa de eloquência posta no papel: "Pelo simples exercício de nossa vontade, podemos fazer um bem praticamente ilimitado...", disse no relatório, expondo essa ideia por trás do tratamento dado aos "selvagens", que logo revela sua outra face em: "e ao final desse comovente apelo a todos os sentimentos altruístas, brilhava para nós, luminosa e aterrorizante, como o clarão de um relâmpago num céu sereno: 'Exterminem todos os brutos!!!'". Kurtz era dono de um posto de marfim muito importante e se dizia estar doente, perto de morrer. O seu nome ecoava das vozes de diversas pessoas, considerado um "homem notável". No entanto, após uma longa viagem, nos deparamos com um ser de aparência fraca e doentia. Kurtz era idolatrado pelos selvagens e havia sido "engolido" pela selva. Aquele seu estado de loucura, entregue aos sentimentos mais primitivos, adentrando naquela cultura selvagem, seria a vingança da selva por essa invasão. A floresta havia dito no ouvido de Kurtz coisas sobre ele, que nem mesmo ele próprio tinha conhecimento sobre. A figura de Kurtz estava deplorável, porém sua capacidade de eloquência, de sinceridade nas palavras ainda se permanecia. Como Marlow diz, a inteligência de Kurtz ainda se mantinha, porém sua "alma" havia enlouquecido.
Nesse limiar, um dos personagens que mais chamou minha atenção foi o "russo" vestido de Arlequim, cujo espírito era de "uma aventura límpida, não calculista". O ego desse personagem se vê apagado, o que se contrasta com todo o sistema imperialista, que sustentava uma ambição material por poder, disfarçada de uma missão civilizatória, que só funcionava como um combustível para o ego do "homem branco" imperialista. Porém, esse mesmo personagem idolatrava o Kurtz, mesmo admitindo que o mesmo havia enlouquecido. Esse jovem tinha uma personalidade marcante em meio àquele contexto, o que até mesmo Marlow invejava.
Ao final, temos uma das cenas mais sombrias: os últimos momentos de Kurtz. Neles, Marlow esteve presente, inicialmente convencendo Kurtz a partir com os peregrinos para fora do continente africano. Kurtz se negava, já que para ele, o objetivo não era se salvar, e sim "salvar o marfim", o que mostrara como havia sucumbido aos desejos mais materiais. Nesse meio tempo, Kurtz construíra uma certa "intimidade" com Marlow, fazendo seus últimos discursos sobre a vida com ele. No fim, Kurtz morre, e suas últimas palavras são "Que horror! Que horror!". Kurtz demonstra uma certa consciência do seu estado de espírito e do seu encontro com a morte, olhando para si mesmo, algo que só a sua experiência na selva havia proporcionado. Kurtz foi muitas coisas, de político e artista a imperialista e de uma provável ascendência da pobreza. Nos deparamos com dois Kurtz diferentes: o de antes e o de depois da selva. Nisso, o livro esclarece que a selva mostra lados dos seres humanos que nem eles próprios tem conhecimento sobre, estando ocultos até aquele devido momento. A consciência do próprio estado talvez tenha apressado a morte de Kurtz que ao final se depara com uma visão horrorosa da própria "alma".
Marlow esteve "na beira" de enlouquecer como Kurtz havia enlouquecido. Essa consciência da própria ganância do homem branco imperialista afetou diretamente seu estado mental. Isso mudou completamente sua adaptacão à sociedade europeia, quando retornara. "(...) sentia certa dificuldade para impedir-me de rir na cara delas, tão cheias de estúpida importância". Todo o conhecimento que adquiriu sobre o comportamento explorador e imperialista mudou a forma como enxergava a sociedade europeia e as figuras "inteiramente respeitáveis" de lá.