Pandora 04/06/2020Estava catalogando meus livros e decidi separar este pra ler. Quando fui atrás de informações sobre os judeus chassídicos*, acabei descobrindo que há uma série em exibição na Netflix chamada Unorthodox (Nada Ortodoxa). Mas sobre ela fiz uma nota ao final.
Li este livro em algumas horas, tamanha a empolgação. Achava que ia dizer que tinha amado. Mas não. E como explicar isso sem dar spoiler? Difícil.
Primeiro sobre a autora: Anouk Markovits nasceu em Israel, de uma família judia ultraortodoxa da comunidade Satmar** originária da Transilvânia, que sobreviveu ao Holocausto. Nos anos 60, quando Anouk era uma criança, eles foram para Estrasburgo, na França. A família da autora era uma das duas únicas famílias hassídicas do lugar; a outra era a de um importante rabino na época. Apesar dos estudos mais sérios relativos à religião serem exclusivos dos homens, ela chegou a participar de um seminário religioso na Inglaterra, como o que é retratado no livro.
Em Nova York, EUA, judeus chassídicos sobreviventes da guerra fundaram uma grande comunidade Satmar. Anouk, a sexta de quinze irmãos, é enviada para lá aos 19 anos por causa de um casamento arranjado. Porém, ela não aceita e abandona a comunidade. Seu pai nunca mais fala com ela, mas ela consegue manter contato com os irmãos.
Ela então se dedica aos estudos: Ciências, na Universidade Columbia, Mestrado em Arquitetura em Harvard e Doutorado em Línguas Românticas em Cornell. Casa-se com um americano e continua na cidade.
O livro: ele é dividido em cinco partes, cada qual chamada ‘livro’. A narrativa começa em 1939, na Transilvânia. No mesmo dia em que o estudioso Zalman tem sua vida inexplicavelmente poupada após topar com soldados, a família de Joseph Lichteinstein, então com cinco anos, é chacinada pela Guarda de Ferro***. Ele é salvo pela empregada gentia que apaga todos os traços judeus do garoto e o cria como filho numa fazenda. Um dia, um casal de judeus em fuga com a filhinha Mila acaba morto e ele ajuda a garota a encontrar-se com Zalman, que era o melhor amigo do pai dela.
A família de Zalman cria a menina da mesma forma que sua primogênita Atara, um ano mais nova que Mila. Porém, enquanto a fé de Mila só aumenta, Atara começa a ler livros seculares e a questionar o fundamentalismo chassídico.
A primeira surpresa do livro é para onde segue o foco a partir do Livro III. Não é o que se espera, mas é interessante.
O problema, para mim, foi a parte final. Não exatamente pelos acontecimentos, mas pela narrativa deles. Achei que a autora perdeu a mão, ficou confuso. Não se parecia mais com aquele livro que eu estava avidamente lendo até então. Uma personagem importante é ofuscada, os diálogos são estranhos, enfim, não gostei. Além disso, os sentimentos que tive por uma certa personagem me deixaram muito perturbada.
Mas enfim, foi uma leitura proveitosa que eu adorei durante boa parte e detestei em determinados momentos; em que aprendi um pouco sobre o chassidismo e que me fez refletir sobre vida, feminismo, religião e sociedade. É bem simplista pensar no judaísmo como um todo, o meio judaico é cheio de ramificações.
Excertos:
No seminário, após o anúncio de noivado de uma das moças, sempre havia dança e cantoria. Atara se irritava.
‘(...) queria silenciar a cantoria; queria falar, em alto e bom som, para que todas as moças ouvissem; partilhar com elas que na biblioteca de Paris ela tinha lido que os nazistas poderiam ter sido derrotados muito antes se forças tivessem se unido, mas líderes religiosos, receando a assimilação, optaram por se organizar contra os bolcheviques que estavam combatendo os nazistas, optaram por não se unir com judeus menos religiosos ou seculares.’
A resposta do pai de Atara quando ela fala em estudar Medicina:
‘Você sabe que é proibido seguir um currículo de estudo seculares? (...) Você já é quase uma mulher crescida e logo isso vai depender do seu marido, mas, até lá, é minha obrigação protegê-la, mesmo contra a sua vontade. Eu preciso assegurar que você não macule o nome da nossa família e ponha em risco seu futuro e o futuro do seus irmãos.’
‘Era egoísta um coração que sonhava em viver a própria vida?’
Notas:
*Judaísmo chassídico ou hassídico - movimento surgido no interior do judaísmo ortodoxo, que promove a espiritualidade através da popularização e internalização do misticismo judaico, como um aspecto fundamental da fé judaica. Hoje, o termo é usado estritamente para referir-se a uma tendência desenvolvida pelo rabino Israel Ben Eliezer (Shem Tov) em reação ao judaísmo legalista, mais intelectualizado.
**Satmar - comunidade chassídica proveniente da cidade de Szatmár, na região da Transilvânia do Norte, que já foi território húngaro e hoje pertence à Romênia. Após a 2ª Guerra Mundial, seu fundador, o rabino Joel Teitelbaum, estabeleceu-se em Williamsburg, distrito do Brooklin, em Nova York, com um pequeno grupo de seguidores. Satmar tornou-se um dos maiores movimentos hassídicos do mundo; hoje estima-se que há entre 65 e 75 mil adeptos. Caracteriza-se pelo ultraconservadorismo, isolacionismo, antissionismo e rejeição à cultura moderna.
***Guarda de Ferro (ou Legião do Arcanjo Miguel) - movimento e partido político romeno ultranacionalista, fascista, anticigano, anti-húngaro e antissemita, fundado em 1927 por Corneliu Zelea Codreanu e bastante atuante até a época da 2ª Guerra Mundial. Seu líder era chamado de Capitão e deteve autoridade absoluta sobre a organização até sua morte. As visões dele influenciaram a extrema direita moderna. Grupos que o reivindicam como precursor incluem Nova Direita (movimento nacionalista da Romênia) e outros sucessores romenos da Guarda de Ferro, Terceira Posição Internacional e várias organizações neofascistas na Itália e em outras partes da Europa.
Unorthodox (Não Ortodoxa) e Making Unorthodox são séries exibidas atualmente pela Netflix. A primeira, em quatro episódios, baseia-se no livro ‘Unorthodox: The Scandalous Rejection of My Hasidic Roots’, de Deborah Feldman. Algo como: ‘Não ortodoxa: a escandalosa rejeição a minhas raizes hassídicas’. A segunda explica como a série foi feita.
Curiosidades:
=> O shtreimel é o item mais caro da vestimenta dos chassídicos. É usado por homens casados no Shabat, em feriados judaicos e outras celebrações. É feito de veludo e pele de zibelina. São necessárias 7, 13, 18, 26, ou mais raramente, 42 caudas do animal para fazer um único chapéu.
=> Um pouco antes de se casar, o cabelo da noiva é raspado e ela passa a usar peruca, a fim de protegê-la dos olhares dos homens. É um sinal para o mundo, também, de que ela está casada. Algumas judias ortodoxas usam lenços para cobrir os cabelos.