spoiler visualizarGabriel Vital 21/06/2014
O Vilão, se é que existe um
Imagine um suspense envolvendo crimes, ficção científica, romances conturbados e distúrbios psicológicos, tudo isso sem um único vilão ou herói definido. A ideia de que todo ser humano é bom e o meio o corrompe, proposta pelo filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau, se faz presente do início ao fim do livro O Vilão, do escritor rio-pretense Jean Pereira Lourenço, que evidentemente, tem mais em comum com Rousseau que apenas o nome.
Jean apresenta ao leitor três narradores-personagens que contam, a partir de seus pontos de vista, uma única história, que se desenrola em apenas três dias. Cada capítulo é contado sob a ótica de um dos protagonistas e o título sugere quem será o narrador. Isso porque o autor nomeou, estrategicamente, os capítulos com palavras que começam com a inicial dos protagonistas: Augusto, Cíntia e Gabriel.
Os três personagens vivem conflitos internos e os capítulos são uma espécie de brainstorm de tudo que se passa na cabeça de cada um no período em que a história é contada. Em um determinado momento do livro o leitor chega a desacreditar que uma única pessoa tenha escrito a obra toda, pois parece, realmente, que cada capítulo foi escrito por uma pessoa diferente, dada a complexidade dos sentimentos e até mesmo a linguagem que cada personagem utiliza.
Augusto é um simples vendedor em uma loja de sapatos, mas possui uma espécie de ‘poder’ que o diferencia do resto do mundo. Ele é capaz de enxergar números que calculam todas as forças que regem o mundo que o cerca, desde de uma simples distância entre um ponto e outro até valores mais abstratos, como a umidade relativa do ar ou a força que deve ser empregada em determinado objeto para que se possa atingir um alvo.
O dom de Augusto é o responsável pela maioria de seus atos, desde o primeiro capítulo quando, em um surto de ódio, o vendedor de sapatos assassina dois homens em um estúdio de tatuagem. A cena poderia ser o retrato de um assassinato qualquer (a tiro ou a facadas, por exemplo) não fosse a ânsia do autor em explorar todo o potencial de Augusto, registrando, logo no início do livro, um massacre cinematográfico no qual dois homens são mortos por uma arma nada convencional: um catéter, desses usados em perfurações corporais. A cena seria digna de ser vista em câmera lenta se fosse adaptada para o cinema.
Cíntia, uma policial de personalidade forte, também vive dramas intensos. A relação com sua irmã, Estela, é descrita como uma relação não muito próxima, mas é pouco explorada. O foco mesmo dos conflitos de Cíntia é o relacionamento com os colegas de trabalho no Distrito Policial, um ambiente dominado por homens que a subjugam por ser mulher. A policial, no entanto, não se conforma em ter sua capacidade como investigadora posta em dúvida e procura provar, mais para si mesma que para os colegas, que é capaz de solucionar qualquer tipo de caso, por mais complexo que seja.
Além do viés feminista que a narração de Cíntia apresenta, há também um outro elemento: a descoberta e aceitação da sexualidade. O envolvimento da policial com Bárbara, uma colega de trabalho, é abordado em caráter secundário, porém com sua devida importância dentro da trama. Não darei mais detalhes para não estragar as surpresas do leitor.
Gabriel é um mistério durante boa parte do livro. A relação que o autor estabelece, comparando o personagem a um anjo, deixa o leitor intrigado e o faz pensar, em alguns momentos, que Gabriel possa ser, de fato, um ser divino.
A história do suposto anjo, no entanto, é tão humana quanto a dos outros personagens. Os conflitos internos de Gabriel, que anseia mudar o seu destino através de um experimento futurista, é um retrato de como traumas de infância, aliados às escolhas erradas, são capazes de alterar uma história.
O último capítulo, nomeado Justiça, não traz a inicial de nenhum dos personagens, mas sim a do próprio autor. O final épico dá um panorama geral da última cena do livro, sob a ótica de um observador externo aos acontecimentos. Apesar das três histórias começarem a se ligar ao longo da narrativa, é neste último momento que tudo faz sentido. É na cena final que o leitor consegue enxergar o livro todo e pensar “agora sim eu vejo que tudo está ligado”.
O suspense de Jean Pereira Lourenço, mesmo abordando dramas psicológicos e questões morais, está longe de ser um guia de comportamento. O autor, em momento algum, julga as atitudes dos personagens como certas ou erradas, mas apresenta cada uma com suas devidas motivações. Por isso, ao final da obra, é impossível dizer quem é o vilão ou quem é o herói, pois todos, em sua natureza, são pessoas boas, corrompidas (ou não?) por fatores externos de suas vivências.
O livro é curto, tem apenas duzentas páginas, portanto pode ser lido em menos de uma semana. Para se ter um êxtase de semiose, recomendo que os próximos leitores o leiam em uma semana chuvosa, o mais cinza possível, pois é assim a atmosfera do livro do início ao fim.
Lendo esta obra, em um livro produzido manualmente, em casa, pelo próprio autor, agradeço ao Jean rio-pretense por traduzir, com tamanha maestria, os ideias do Jean suíço. Não sei dizer se isso foi intencional, mas não se pode negar que as ideias casam.
site: http://dossie.in